No Tibete os horizontes são infinitos: paisagens de cortar o fôlego se estendem através do planalto mais alto do mundo, a mais de 4 mil metros de altitude média. Ao longe, as montanhas do Himalaia, com suas neves eternas e o monte Everest. Mas o horizonte de um tibetano vai apenas de um check-point a outro. Os chineses, que ocupam militarmente este país anexado há exatos 50 anos, construíram barreiras com soldados armados e controlam todo mundo que passa. Um tibetano precisa de uma espécie de passaporte interno para andar no próprio país, dando explicações sobre aonde vai, quando e por que para a burocracia chinesa. E só quem já tentou discutir com um burocrata chinês sabe o que isso significa. “Não acredite em nada do que você está vendo’’, alerta o monge, num dos mais impressionantes mosteiros do Tibete, em meio à paisagem deslumbrante. Para os budistas, o mundo é uma ilusão, mas sei que o religioso não está falando de metafísica, nem tentando me converter. Depois de olhar para os lados, desconfiado, ele diz, sorrindo muito, como se estivesse discutindo amenidades: “A calma é apenas aparente. Este país é uma prisão. A violência continua. Nossa vida é muito dura. Todo mundo tem medo. Eles prenderam muita gente e em outra ala do mosteiro, onde não vão deixar você entrar, os comissários políticos continuam tentando doutrinar os monges.” Ele sorri novamente, vigia os arredores com o canto do olho e desaparece como uma sombra, tão discretamente quanto veio.

“A ocupação chinesa do Tibete é obra do mais brutal e desumano de todos os regimes comunistas que já existiram no mundo.” A frase é do escritor russo e ex-dissidente soviético Alexander Soljenitsyn, Prêmio Nobel de 1970. O mínimo que se pode dizer é que ele conhece o assunto. Existem várias maneiras de destruir um país e, em meio século de ocupação, os tibetanos já viram todas. A primeira é a física. Desde 1950, quando invadiram o Tibete alegando que era apenas uma província chinesa, praticamente todos os templos e mosteiros foram profanados, destruídos, incendiados e demolidos a picaretadas. Dos seis mil que existiam, apenas oito escaparam. Consta que o Potala, o magnífico palácio dos dalai-lamas, com seus 118 metros de altura e 400 de comprimento, 13 andares e mil janelas, construído em 1650, só foi salvo da fúria dos guardas vermelhos durante a Revolução Cultural (1966-1976) porque o próprio premiê Zhou Enlai mandou tropas especiais para impedir. Cerca de 1,2 milhão de tibetanos morreram, assassinados, torturados, queimados vivos, em campos de concentração ou de fome causada pela coletivização forçada. Sem falar dos milhares de mulheres obrigadas a abortar e esterilizadas à força.

Demolição silenciosa – A outra maneira de destruição é mais sutil. O Potala, que era o símbolo dessa capital fechada ao mundo e fez sonhar gerações de exploradores, não foi fisicamente destruído. Mas a orgulhosa cidadela branca e vermelha viu-se afogada no meio de construções horríveis e a capital sagrada do budismo tibetano, completamente desfigurada. Quando o Tibete ainda era um país livre, muito antes de chegar a Lhasa, o viajante avistava de longe o majestoso palácio. Hoje, dá de cara com uma sucessão de barracões militares, hangares de cimento, conjuntos habitacionais e construções medonhas. Para admirar o Potala e fazer fotos que dêem uma pálida idéia do que ele foi, é preciso subir no teto do templo Jokhang e cortar os prédios grotescos do quadro. A famosa imagem do palácio do dalai-lama refletido na água do lago, hoje, só nos livros. Os chineses aterraram o lago e cimentaram tudo, construindo uma espécie de minipraça Tian Am Men, de triste memória, como em Pequim, onde flutua uma gigantesca bandeira vermelha. Para completar, instalaram uma discoteca, ao lado do edifício religioso mais sagrado do budismo tibetano. É o mesmo que colocar um peep-show na porta do Vaticano. “Por que não o mausoléu de Mao Tsé-tung patrocinado pela Coca-Cola, já que os chineses são tão modernos?’’, ironiza um turista indignado. A universidade que existia em frente, o maior centro da cultura tibetana no mundo, foi pura e simplesmente demolida. No lugar, fica uma antena de uma rede de tevê. Que transmite em chinês, claro. “Aqui era o fim do mundo. Hoje temos bares, discotecas, cassinos, videogames, karaokês e até cyber-cafés’’, vangloria-se o dono de um restaurante chinês. O karaokê, o vidro fumê parecem ser considerados pelos chineses como a forma mais elevada de civilização. A capital sagrada do budismo tibetano hoje é mais conhecida como “a cidade dos mil bordéis’’. Umas lojas estranhas, com vidro fumê azul e cortinas vermelhas proliferam por todo lado. Sem falar nos “salões de cabeleireiro”. Dada a proliferação desses profissionais, Lhasa deve ser a cidade mais bem-penteada do mundo.

Limpeza étnica – Nestas cinco décadas, a capital do Tibete passou de 20 mil a 30 mil habitantes para 300 mil ou 400 mil, ninguém sabe ao certo, dos quais se calcula que menos de 50 mil são tibetanos. Dezenas de casas tradicionais foram demolidas para alargar as ruas e dar espaço aos tanques chineses para invadir e manobrar ao menor sinal de rebelião. Em Lhasa, é mais difícil ver tibetanos do que chineses, que se comportam como senhores de terra conquistada. No Tibete, os chineses já são sete milhões, contra seis milhões de tibetanos. Consta que o governo de Pequim pretende transferir entre 15 milhões e 20 milhões de chineses até 2020. As organizações de Direitos Humanos denunciam uma verdadeira “limpeza étnica”. Para atrair colonos, Pequim transformou o Tibete em zona econômica especial, com um princípio de economia de mercado, que tenta seduzir os investidores com salários baixíssimos e isenções fiscais. Lhasa é o novo Eldorado, senão o faroeste, dos chineses que querem fazer fortuna. O governo chinês acaba de anunciar a construção de uma estrada de ferro de 1.500 quilômetros que vai “abrir o Tibete para o mundo”. O mundo, no caso, é a província chinesa de Quinghai. “É um meio de levar mais colonos e soldados”, denuncia o governo tibetano no exílio.

Mas não é preciso ser especialista em economia para constatar que a propaganda chinesa de que “os libertadores’’ levaram o progresso para o país é balela. “O tal boom econômico só beneficia os chineses. Nós, tibetanos, não temos acesso a nada: todos os bons empregos, o direito de abrir um comércio, de fazer negócios e até de ir à escola secundária são reservados aos chineses. Essa aparência de progresso e prosperidade é só um álibi para justificar a presença deles no país’’, conta um professor tibetano, que vamos chamar de Dorge por razões de segurança. “A única coisa que eles realmente fizeram foi construir estradas, porque eram necessárias para o comércio, para fazer entrar os imigrantes, soldados e os tanques. E se eles acham que melhoraram tanto nossa vida, por que os chineses não organizam eleições livres no Tibete?”, resume Dorge.

Falso monge – Diante do Jokhang, somos um grupo de estrangeiros conversando. De repente, aparece um monge muito estranho. Ele pede fotos do dalai-lama em público, no meio da praça. Isso é absolutamente proibido e pode provocar a expulsão por proselitismo político antichinês, ou a prisão para os tibetanos. Mesmo assim, muita gente pede aos turistas, que geralmente levam escondido e distribuem discretamente. O monge insiste, num inglês perfeito, uma agressividade e uma vastíssima cabeleira que não têm nada a ver com os monges habituais. No final, irritado, para nos convencer, ele mostra uma carteirinha com foto. Ora, as pessoas daquele grupo conheceram todos os países budistas do mundo e visitaram centenas de templos e mosteiros. Mas monge de carteirinha foi a primeira vez na vida que topamos com um…

Mesmo com toda a presença militar e vigilância, em vários pontos do país tibetanos se aproximaram de mim quando estava sozinha e resumiram a situação num inglês aproximativo: “Chinese bad, kill people, no freedom’’ (chineses são maus, matam pessoas, não temos liberdade). Pequim jamais conquistou os corações e as mentes desse povo do Himalaia. 

Quem tem o que comemorar?

Lhasa está mais policiada do que nunca. Começaram as comemorações oficiais do 50º aniversário da anexação do Tibete pela China. No dia 23 de maio de 1951, oito meses depois da invasão pelo Exército Vermelho, uma delegação tibetana assinou em Pequim um acordo que aceitava a dominação chinesa. Ou a “Liberação Pacífica do Tibete”, como quer Pequim. Essa delegação não tinha mandato para tanto, estava mantida como refém em Pequim. Agora, os chineses prometem uma festa com discursos, danças e espetáculos folclóricos. A festa é, no mínimo, estranha. As comemorações são mantidas em segredo até a véspera, com medo da reação popular. Para piorar o nervosismo dos chineses, na quarta-feira 23 o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, recebeu na Casa Branca o dalai-lama, líder espiritual dos tibetanos e Prêmio Nobel da Paz, mais conhecido como “Cabeça de Serpente” pela propaganda do regime.