A estratégia do ministro Domingo Cavallo para enfrentar a crise econômica profunda em que a Argentina se encontra corre o sério risco de alcançar a unanimidade: a impressão é que, daqui a pouco, toda a sociedade argentina será contra. O diagnóstico foi feito recentemente e em tom de catástrofe por um dos principais líderes sindicais do país, Víctor de Gennaro: “Este governo está criando as bases para uma ruptura social sem precedentes.” A aversão ao governo De la Rúa agora extrapola os protestos de trabalhadores, industriais, comerciantes, estudantes e “madres” da Plaza de Mayo. Eles, claro, continuam a se manifestar, cada vez mais barulhentos chegando a bloquear as principais estradas do país nas últimas semanas. Muito mais discretos, até os investidores internacionais já deixam evidente que o entusiasmo com Cavallo e suas idéias mirabolantes é coisa do passado. A última cartada do ministro, a troca de títulos da dívida argentina por papéis de prazo maior, foi recebida com um solene distanciamento. “A troca interessará muitos investidores argentinos e menos os estrangeiros. O mercado sul-americano está em baixa”, disse Guillermo de la Dehesa, vice-presidente na Europa do banco americano de investimentos Goldman Sachs. Como outros investidores de peso, De la Dehesa foi a Buenos Aires na semana passada participar da Cúpula Econômica do Mercosul, um evento realizado pelo Fórum Econômico Mundial, aquele mesmo que realiza os eventos de Davos, considerado o principal ponto de encontro dos defensores da privatização e das leis de mercado e o caminho mais eficiente para o progresso.

Durante sua passagem pelo “Davosito”, como o evento foi batizado pela imprensa local, Cavallo teve de acertar as contas com os críticos, inclusive com aqueles que patrocinaram seus melhores momentos, os tais investidores do mercado financeiro. “Eu diria que os mercados não me apóiam nem deixam de me apoiar. Eles simplesmente se assustam e hoje, na minha opinião, andam exageradamente assustados”, afirmou. “As empresas portuguesas já investiram no Mercosul cerca de US$ 10 bilhões. Por isso estamos muito preocupados com o que está acontecendo na região”, disse o ministro português da Economia, Mário Cristina de Sousa, também presente ao encontro.

Buraco – Nos próximos dias Cavallo embarca mais uma vez para a Europa, justamente, para tentar acalmar os tais mercados e convencê-los de que será um bom negócio aderir aos novos títulos de prazo maior. Um dia depois de ir ao “Davosito”, ele admitiu que a troca de papéis não será mesmo uma “panacéia”. Haverá, reconheceu, muito a fazer depois disso para que a economia saia da recessão de quase três anos e consiga se reerguer.

Os dados mais recentes são uma boa medida do buraco em que o país se encontra. No mês de abril, a venda de veículos novos caiu 30% em relação ao ano passado, que já havia sido bastante ruim, e o desemprego atingiu 16% da população economicamente ativa. Para contornar o problema na indústria automobilística, o governo anunciou na quarta-feira 23 que irá abrir mão de impostos para que o preço final caia 15% e assim, quem sabe, consiga sair do atoleiro. A Aerolíneas Argentinas, a companhia aérea que já foi orgulho nacional, agoniza. Comprada por um consórcio controlado pelo governo espanhol, a empresa não pagou o salário de abril. Os sindicatos denunciam que os novos donos querem mesmo é fechá-la. Pequenos produtores também sentem o sufoco. No início da semana passada, apicultores foram à Casa Rosada, a sede do governo, pedir socorro. Os EUA aumentaram a taxação sobre o mel e o prejuízo deverá ser de US$ 50 milhões. A maré também anda ruim para o principal item da pauta argentina de exportação, o trigo: desde o início do ano, o preço caiu mais de 20%.

O acordo automotivo poderá até dar resultados, mas arrecadar menos é tudo de que o governo não precisa no momento. Na quarta-feira 23, o governador da Província de Buenos Aires, Carlos Ruckauf e outros governadores se reuniram com Cavallo. “Assim como o governo está acertando suas contas com os credores, nós também queremos a nossa parte”, afirmou. Desde o ano passado, o governo federal deixou de repassar às províncias cerca de US$ 1 bilhão.

Escambo – A grande questão é saber se o ministro Cavallo terá tempo ou se a tal ruptura temida por Gennaro virá antes disso. O fato é que a opinião pública argentina anda assustada: a violência e a miséria aumentam visivelmente e a crise é o tema principal de jornais, revistas e programas de tevê. Para escapar dos impostos, mas também por absoluta falta de dinheiro, muitos argentinos estão tendo de viver à base do escambo, simplesmente trocando mercadorias para sobreviver. Esse sistema primitivo já movimenta meio milhão de dólares. Com a popularidade em baixa, a sensação crescente é de que De la Rúa dificilmente chegará ao fim do mandato.

Quem paga a conta do gás?

A política do governo FHC para o setor elétrico conseguiu desagradar a esquerda, mas também os maiores interessados no processo, os investidores internacionais de alto quilate. Ao menos foi esse o recado dado a Henri Philippe Reichstul, presidente da Petrobras, durante almoço ocorrido na semana passada em Buenos Aires, durante a Cúpula Econômica do Mercosul.

“A incerteza e as dúvidas são os maiores inimigos dos investidores. A Shell não está feliz com o caminho escolhido pelo Brasil”, disse David Beer, presidente da multinacional na Argentina, a uma platéia de menos de 30 pessoas, a maioria delas executivos da área de energia. “Não será possível investir no Brasil sem regras estáveis de longo prazo”, completou Gustavo Fazio, presidente da multinacional argentina Impsa, especializada na fabricação de equipamentos para usinas de geração de energia.

Reichstul disse que a saída para dar segurança aos investidores, ao menos no caso das termelétricas, já havia sido encaminhada ao governo: como o gás que será usado para produzir energia virá da Bolívia e será pago em dólar, enquanto as tarifas serão cobradas do consumidor final em reais, há aí o chamado risco cambial. Ou seja, o risco de o real desvalorizar-se em relação ao dólar e de as empresas distribuidoras de energia terem de amargar prejuízos. A proposta de Reichstul é a Petrobras financiar as eventuais oscilações do câmbio durante 12 meses. Ao final desse prazo, as distribuidoras teriam suas tarifas corrigidas e pagariam à Petrobras o valor financiado. Na paranaense Copel, a estratégia foi criar uma banda de flutuação em torno do IGPM que corrigirá os custos anualmente, pela variação de um índice de inflação, e racharia os custos no caso de uma maxidesvalorização. “Para a Petrobras, não será um custo, mas uma operação neutra do ponto de vista econômico”, diz o presidente da estatal. Acionistas minoritários da empresa já temem os prejuízos. E há quem fale numa “conta-gás” dentro da empresa, que, à maneira de outras “contas” inventadas por governos passados, serviria para camuflar custos e distorcer as contas públicas.