A imensa barriga de Ana Figueiredo, 33 anos, só atrapalha o fluxo no cômodo minúsculo que ela divide com outras 12 pessoas, num cortiço no centro de São Paulo. Ana está grávida de seu décimo filho. Ela já é avó de duas crianças e vive com a prole, o marido e a mãe num quarto invadido, um cubículo, de 3,5m por 7m, onde cabem apenas uma cama de casal e um beliche. A triste constatação é saber que, assim como Ana e sua família, existem mais de 22 milhões de desabrigados ou moradores em domicílios precários, o que significa 13% da população do País. Desse total, 85% ganham de um a cinco salários mínimos. “Ainda me considero uma pessoa de sorte porque tive forças para invadir este barraco. E os que nem isso têm?” Sobram as ruas, pontes e viadutos. O déficit habitacional, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é de 5,5 milhões de moradias, contabilizadas por família. No Brasil, existe 0,93 casa por habitante, enquanto nos Estados Unidos esse número chega a 1,42.

Tentando procurar saídas para resolver um dos problemas mais graves
do País, o Instituto Cidadania, ONG dirigida por Luiz Inácio Lula da Silva, em parceria com a Fundação Djalma Guimarães, apresentou na sexta-feira 26 o Projeto Moradia. Elaborado em conjunto com prefeituras, governos estaduais, movimentos e entidades civis, é o maior projeto não-governamental já realizado na área de habitação. Mas o problema do déficit habitacional brasileiro, agravado a partir dos anos 50 devido ao boom na migração para as grandes cidades, tem poucas chances de ser resolvido em curto prazo. Até os idealizadores do Projeto Moradia admitem que as propostas não são mágicas. Entre essas, estão a criação de fundos com recursos do FGTS e da União, Estados e municípios e medidas de barateamento do acesso à terra e à moradia. Além disso, o projeto prevê a criação do Fundo Nacional de Moradia com recursos do Orçamento da União e uma porcentagem da dívida dos Estados e municípios. “Não adianta ter recursos para construir, é preciso pensar a questão de forma integrada”, diz Nabiu Bonduki, um dos coordenadores do projeto. A expectativa é ver as idéias como as do Projeto Moradia tornarem-se realidade. Para isso, seus idealizadores vão incentivar sua aplicação em administrações públicas.

A Emenda Constitucional, aprovada em fevereiro, do senador Mauro Miranda (PMDB-GO), que faz da moradia um direito fundamental do cidadão, deu mais ânimo e esperança aos representantes dos movimentos dos sem-teto. “Essas medidas legitimam nossa reivindicação”, diz Donizete Fernandes de Oliveira, coordenador da União Nacional por Moradia Popular. Verônica Kroll, líder do Fórum dos Cortiços de São Paulo, também aplaude. “Antes a gente lutava através da legislação do salário mínimo, que, pela Constituição, teria de cobrir gastos com moradia, mas, na realidade, não cobre nada. A emenda é mais uma arma”, afirma. Teoricamente, a iniciativa do senador melhora as chances de os desabrigados ganharem mais atenção dos governos. Mas para o advogado constitucionalista Paulo Adib Casseb, o fato de a moradia passar a ser um direito fundamental do cidadão não vai mudar muita coisa. “Ela não vai servir como arma para ninguém. Só porque está na Constituição vai funcionar? O cidadão só pode fazer alguma coisa na hora da eleição”, opina o advogado.

Mas, se o salário mínimo de R$ 151 é uma miragem, mesmo quem ganha mais não consegue se manter pagando aluguel. É o caso de Valmir Alves dos Santos, 50 anos, que trabalha como segurança. A renda de R$ 600 não é suficiente para sustentar a mulher e o filho. Baiano de Irecê, desde que chegou em São Paulo, em 1989, ele muda de uma favela para outra. Hoje vive num cortiço e procura uma forma de financiar a casa própria, onde sonha poder pendurar na parede as dezenas de quadros do Palmeiras que coleciona há anos. “Se eu pagar aluguel, não como”, diz. Em São Paulo, é comum encortiçados e moradores de favelas em terrenos invadidos serem despejados mensalmente. Foi o que aconteceu no último dia 19, quando cerca de 500 famílias foram desalojadas pela PM de uma área irregular em Guaianazes, na zona leste de São Paulo, ocupada há 17 anos. São milhares de famílias obrigadas a pular de um lugar para o outro, invadindo propriedades alheias abandonadas. Marilene Rosa Silva, 37 anos, mãe de quatro filhos, diz que vive como bicho, num casarão abandonado no centro da cidade. “Morava na favela, mas meu marido é camelô e não dava nem para pagar o barraco. Invadimos este lugar há 15 anos, fomos despejados e voltamos. Até hoje não resolveram nosso problema”, queixa-se. A maior tristeza de Marilene é ver os filhos crescerem ali. “Eles nunca trouxeram amigos, não dão o endereço e morrem de vergonha daqui.”


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