O general Antônio Ferreira Marques, que comandou o Terceiro Exército (Região Sul), quebra o silêncio e expõe o pensamento da caserna quando o assunto é o governo Fernando Henrique Cardoso. Aos 85 anos, Marques, que foi chefe do Estado-Maior no governo Figueiredo e chegou a ocupar interinamente o cargo de ministro do Exército na administração de Aureliano Chaves, recebeu, apesar da proibição do Regulamento Disciplinar do Exército, ISTOÉ para uma entrevista na qual afirmou que o País passa por uma degradação da classe política. Disse que os brasileiros já reavaliam o período dos governos militares, graças ao sucateamento do patrimônio nacional, à sucessão de escândalos financeiros e, agora, à grave crise energética que ameaça a Nação. Antônio Marques é presidente do conselho do Grupo das Bandeiras, uma respeitada agremiação fundada por oficiais da reserva após o fim dos governos militares. O general é considerado uma espécie de porta-voz informal do pensamento militar. Segundo ele, há uma maior tomada de consciência de que as privatizações promovidas por Fernando Henrique Cardoso “foram a venda do patrimônio nacional erguido nos anos 60 e 70”. O governo nada investiu em energia e revela: “Verbas haviam sido destinadas, inclusive, para a modernização e incremento do potencial energético de Furnas, mas deixaram de ser usadas ou foram desviadas para outros fins diante da decisão de se privatizar a hidrelétrica.”

ISTOÉ – Há risco de uma nova intervenção militar no Brasil?
General Antônio Ferreira Marques – De maneira alguma. As Forças Armadas estão coesas na sua decisão de respeitar os princípios democráticos. Estão empenhadas hoje, apesar de seus parcos recursos, em garantir a soberania sobre o território nacional. Estou me referindo principalmente à Amazônia. As Forças Armadas não permaneceriam insensíveis a um apelo da sociedade, caso se configure a ameaça de um colapso. Sem trocadilhos, a ameaça de que mergulhemos de vez nas trevas.

ISTOÉ – É esse o sentimento que prevalece entre os chefes militares?
Marques – As Forças Armadas permanecem fiéis a seus princípios e sem submeter-se à influência de grupos ideológicos. A redistribuição de tropas para o comando da Amazônia é tarefa de dimensão geopolítica e está sendo executada a despeito da notória escassez de recursos. As tensões no norte da América do Sul exigem uma presença mais ativa das Forças Armadas na região. O Brasil está sendo observado de perto por todos os atores políticos na área e qualquer vacilo se refletirá fatalmente no peso diplomático do Brasil não só na região, mas também nos foros internacionais onde negocia. Lamentavelmente, por razões históricas que carregam um sentido revanchista, tem-se tentado punir as Forças Armadas através da negação de recursos essenciais a sua operação e reequipamento. Não percebem que estão enfraquecendo a importância estratégica do País. A capacidade militar é um dado das relações internacionais, como bem demonstrou a China em episódio recente. O que está acontecendo com o Brasil: miopia ou ação intencional?

ISTOÉ – A crise energética poderia afetar a disponibilidade defensiva brasileira, principalmente na Amazônia?
Marques – Energia é poder. A energia em todas as suas formas é um ativo estratégico do País. Olhe a história e constate que grandes potências militares perderam guerras por falta de energia.

ISTOÉ – Como o sr. e os militares estão vendo a crise energética?
Marques – Os militares são parte do povo. E o povo constata que a atual crise não é decorrente simplesmente de erros de planejamento, como propalam alguns. É muito mais grave. Decorre diretamente do tipo de política econômica que dirige o País. O núcleo central dessa política, que é o governo, constitui-se por auditores de gabinete, que têm como único objetivo acoplar o Brasil ao mercado financeiro internacional. Nessa equação não entra o País real, a agricultura, a energia, as estradas que estão completamente abandonadas na malha não-pedagiada; a situação das grandes metrópoles, etc. Nesse quadro deplorável, a falta de energia decorrente da falta de investimentos. Veja o caso Furnas. É um risco assumido pelo governo FHC, visando receber boas notas do FMI pelo extraordinário superávit primário conseguido em 2000, algo em torno de R$ 38 bilhões. Esse dado é contraditório com a alegada falta de recursos para investimentos públicos essenciais.

ISTOÉ – Essa visão não é demasiadamente severa?
Marques – Absolutamente. O que constatamos é que o indisfarçável orgulho da equipe econômica é superar as metas do Fundo, mesmo à custa de jogar o Brasil na escuridão. A postura do governo frente à crise energética é o exemplo mais contundente do divórcio existente entre o País real, de todos nós, e o País fictício, que reside no Planalto. Temos os melhores especialistas em energia elétrica do mundo. No entanto, nomeou-se um comitê gerenciador da crise constituído pelos mesmos personagens que produziram o desastre por cortes orçamentários, privatizações inexplicáveis e desmontes de sistemas integrados. Ninguém foi punido e os pais do erro foram agraciados com novos poderes. Nenhum especialista em energia foi incluído na comissão, a não ser um que presidiu a liquidação do sistema CESP (Centrais Elétricas de São Paulo), o mais importante do Brasil.