Se o caos tivesse sido planejado, dificilmente teria sido mais perfeito. Ao ver na privatização um substituto para o planejamento e a responsabilidade pública na área de energia, o governo brasileiro errou tanto quanto o governo argentino ao acreditar no câmbio fixo como substituto para a responsabilidade do Estado na área monetária, com consequências igualmente sérias para o desenvolvimento a longo prazo. Chegamos a uma catástrofe que pode nos obrigar a aceitar tarifas extorsivas para não ficar no escuro e a paralisar todos os outros investimentos industriais e sociais para viabilizar o investimento em energia – assim como os argentinos correm o risco de uma crise cambial capaz de forçá-los a aceitar a dolarização e perder o que lhes resta de soberania.

O péssimo gerenciamento da privatização e a inépcia dos órgãos reguladores agravaram e anteciparam o problema. Grande parte da eletricidade foi privatizada sem se definir o conjunto da regulamentação e sem se cumprir as regras que chegaram a ser definidas. Nas geradoras ainda estatais, os investimentos foram cortados para atender os credores externos e às metas do FMI, e as reservas de água acumuladas pelas chuvas excepcionais de 1999 e 2000 foram consumidas na certeza de que a natureza continuaria a ser igualmente generosa.

Sob esse modelo, porém, mesmo um governo mais competente enfrentaria cedo ou tarde a escassez. É ótimo para a economia e o ambiente que a maior parte da eletricidade do Brasil seja gerada a baixo custo por enormes hidrelétricas, mas isso não favorece a eficiência da concorrência. Não se pode esperar que o mercado equilibre oferta e demanda suavemente quando a eficiência está mais ligada ao clima e a geografia do que à tecnologia; quando o produto não armazenável nem pode ser importado, mas é vital e insubstituível; e quando a operação envolve responsabilidades colaterais e geralmente pouco lucrativas fora da atividade principal – controle de cheias, irrigação, navegação, preservação de espécies aquáticas, qualidade da água, pesca, turismo.

Estatização – Não entram novos concorrentes hidrelétricos onde os melhores recursos hidrográficos já foram aproveitados. Sem o risco de novos concorrentes mais eficientes, interessa ao gestor privado esperar a escassez para poder aumentar as tarifas, em vez de aumentar a oferta, baixar o preço da energia e impulsionar o resto da economia à sua custa. Tem havido interesse privado em extrair o lucro praticamente garantido da capacidade já instalada, mas quase nenhum em ampliá-la. Quanto às termelétricas, o investidor privado deixou claro que não quer concorrer com colossos hidrelétricos capazes de gerar energia a menos de US$ 35 por mWh enquanto puder vender energia nos EUA ou na Europa a US$ 80 sem risco cambial e risco-país. Se algumas das prometidas 49 termelétricas a gás saírem do papel será, na maior parte dos casos, porque a Petrobras foi autorizada a tocá-las sem esperar pelos esquivos parceiros privados.

Durante muito tempo, o planejamento do setor elétrico foi uma responsabilidade do Estado em todo o mundo. A gestão podia ser privada – como era geralmente o caso nos EUA –, mas devia acatar metas de atendimento e preços controlados de forma que o lucro fosse proporcional aos equipamentos instalados, o que estimulava o investimento. A taxa de retorno dos investimentos em energia não era espetacular, mas garantida.

Em muitos países, isso não foi suficiente. Riscos de instabilidade política, inflação, flutuação do câmbio e vulnerabilidade externa anularam, do ponto de vista privado, a segurança proporcionada pelo consumo cativo. O investidor privado retirava lucro, mas não se dispunha a assumir riscos e responsabilidades na dimensão dos investimentos necessários ao desenvolvimento nacional, principalmente em regiões atrasadas. No Brasil, como em muitos países europeus, isso levou à estatização geral. Mas até os EUA consideram excessivas para o setor privado as responsabilidades ligadas à gestão das grandes hidrelétricas, mantendo-as sob controle federal.

Regressão – Só no início dos anos 90, um governo, o britânico, tentou privatizar inteiramente não só a gestão como também o planejamento do setor elétrico, substituindo a regulamentação estatal de preços e o investimento por um mercado concorrencial. Na Inglaterra, a oferta é termelétrica e a demanda residencial, densa e homogênea. As normas da privatização puderam obrigar as distribuidoras a alugar sua estrutura por preços baixos, viabilizando a concorrência (25% dos consumidores trocaram de fornecedor). Os preços dos combustíveis caíram durante os primeiros anos da privatização, possibilitando a redução das tarifas médias. A folga de capacidade herdada da administração estatal e o ritmo moderado do crescimento da demanda ainda afastam o risco de escassez – mas as tarifas subiram para os consumidores rurais e famílias pobres, e estima-se que a retenção proposital de capacidade pelas líderes do mercado mantém os preços 25% mais altos do que seriam num regime de concorrência perfeita.

A opinião pública em partes dos EUA, como a Califórnia, onde a atuação deficiente dos governos estaduais havia permitido às tarifas subirem até 40% acima da média nacional, passou a favorecer o modelo britânico. Mas na distribuição seria muito complicado: é difícil forçar as distribuidoras, que sempre foram privadas, a facilitar o acesso de concorrentes; grandes distâncias e população esparsa tornam pouco atraente atender áreas rurais e semi-rurais, se não for a preços extorsivos. A Califórnia optou por concorrência na geração e regulamentação na distribuição. As próprias distribuidoras pensaram que a concorrência na geração reduziria o custo, de modo que só teriam a ganhar com tarifas de distribuição fixas. Mas a explosão da informática na segunda metade dos anos 90 trouxe um enorme aumento de consumo, especialmente no Vale do Silício, e ao mesmo tempo desviou capitais de investimentos em geração, já dificultados pela queda dos preços da energia devido ao barateamento dos combustíveis. A desorganização do planejamento e a sobrecarga das linhas de transmissão pela luta concorrencial por clientes distantes complicaram a situação e colocaram a economia mais próspera do mundo à mercê de problemas típicos das periferias do planeta: apagões e tarifaços.

Vendeu-se 60% da distribuição
e 25% da geração

Quando o presidente Fernando Henrique assumiu, apenas 2,4% da distribuição e 4,8% da geração eram privados. Desde então, foi vendida a maior parte da distribuição de São Paulo, boa parte do Rio Grande do Sul e do Nordeste e toda a distribuição do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, antes sob controle de empresas estaduais, totalizando 60,3% do mercado. A maior estatal ainda atuando na distribuição é hoje a Cemig, da qual investidores estrangeiros adquiriram uma participação minoritária e chegaram a assumir a gestão, mas foram afastados dela pelo governador Itamar Franco.

A privatização da geração diz respeito a algumas usinas isoladas construídas por consórcios privados, às usinas antes pertencentes a essas mesmas empresas de distribuição e à Gerasul, empresa federal de geração da região Sul e de Mato Grosso do Sul. Como a maioria das estaduais privatizadas obtinha a maior parte de sua energia das geradoras federais e só as paulistas tinham uma geração própria considerável, a privatização atingiu (excluindo Itaipu, que não será privatizada) apenas 24,7% da geração até agora, parcela concentrada em São Paulo e na região Sul. A privatização das geradoras federais do Sudeste (Furnas), Nordeste (Chesf) e Norte (Eletronorte) continua indefinida.