A trapalhada do governo ao editar a medida provisória que recria o Ministério do Apagão e revoga o Código de Defesa do Consumidor foi tanta que a Câmara de Gestão da Crise já admitia na sexta-feira 25 rever a anulação das determinações do código durante o racionamento. Pressionado pela repercussão negativa que uniu a população, juristas e diversos setores do Judiciário, o ministro do blecaute, Pedro Parente, se mostrou disposto a pôr o assunto em pauta. O advogado geral da união, Gilmar Mendes, optou por um discurso conciliador ao afirmar que “não há ponto fechado, o direito de ir à Justiça continua íntegro”. A intenção palaciana desde o início foi de desligar da tomada a Justiça, que já se pronunciava contra as imposições do racionamento. Parente admitiu, na quinta-feira 24, que o governo estuda a posibilidade de decretar feriado nas segundas ou sextas-feiras para fugir do apagão. A economia de energia durante um dia de folga dos trabalhadores representaria 20% dos dias úteis de trabalho. A medida adicional seria adotada no final de julho.

As declarações das autoridades em defesa do pacote poderiam ser classificadas como cômicas se a situação não fosse trágica. Juristas reagiram com firmeza ao que chamaram de medida desesperada. Segundo eles, trata-se de mais um ato inconstitucional. O governo amordaçou os Procons, as entidades civis e o Ministério Público no que se refere às ações civis públicas contra o pacote antiapagão. A decisão dificulta o acesso do consumidor à Justiça e protege o governo e as distribuidoras de energia contra as ações, crescentes no País.

A reação governista à Justiça que favoreceu o consumidor foi rápida. O diretor-geral da Agência Nacional de Petróleo, David Zylbersztajn, deu o tom da retaliação: “Quem recorrer à Justiça e vencer vai ganhar de presente o apagão”, advertiu o primeiro-genro, um esbanjador de energia pelos padrões do pacote. Ele, a filha de FHC e os dois filhos consomem mensalmente 1.400 kWh, sete vezes acima do limite estipulado para isenção de sobretaxa. O secretário de Energia de São Paulo, Mauro Arce, também integrante do Ministério do Apagão, segue fazendo o mesmo barulho de Zylbersztajn: “Vamos colocar banda de música na porta do cara e cortar a luz.”

Mas a reedição da MP não atemorizou a Justiça. Em Marília, interior de São Paulo, o juiz da 2ª Vara Federal Salem Cury concedeu na quinta-feira 24 liminar suspendendo o corte de energia e a cobrança da sobretaxa em todo o País. E apertou o cerco contra as distribuidoras, determinando multa diária de R$ 10 mil por corte ou cobrança de multa. O autor da ação, o procurador Jefferson Aparecido Dias, explica não ser contra a economia de energia. “Até desligamos o freezer lá em casa. Há muito tempo só uso lâmpadas econômicas. O que é inconcebível e me levou a propor a ação foi o fato de não concordar que a crise energética justifique medidas totalmente inconstitucionais”, afirmou.

Para o jurista Celso Ribeiro Bastos, “a medida não tem competência para derrubar o Código de Defesa do Consumidor”. Segundo Bastos, trata-se de um direito do cidadão previsto na Constituição. O tributarista Roque Antonio Carrazza, titular da cadeira de direito tributário da PUC-SP, segue na mesma linha: “É uma manobra capciosa para atropelar o direito das pessoas. Vejo nisso um típico caso de desvio de função legislativa”, afirma. Carrazza aponta outros atos inconstitucionais baixados pelo governo que permanecem mesmo com a nova MP do apagão: “Eles perduram, tanto no que se refere aos cortes de energia quanto às multas impostas.” O presidente do Conselho Federal da OAB, Rubens Approbato Machado, aumenta o coro da indignação. “Voltamos a 1964. É um verdadeiro ato institucional nº 1, porque tira do Poder Judiciário a apreciação de lesões a direitos do consumidor, o que viola princípios fundamentais da Constituição”. Approbato orientou as 27 seccionais da OAB para que promovam ações em defesa dos consumidores. Dependendo da resposta do Judiciário às ações, o Conselho Federal poderá disparar mais um tiro contra o racionamento: uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), junto ao Supremo Tribunal Federal. Carlos Miguel Aidar, presidente da OAB-SP, também reage ao cerceamento da Justiça: “O governo está brincando com a gente. Ele pensa que há 160 milhões de idiotas nesse país.” Segundo Aidar, a OAB de São Paulo vai ingressar na Justiça Federal na terça-feira 28, com uma ação civil pública para beneficiar os consumidores paulistas.

Mobilização – A medida não parou os Procons. Em São Paulo, o diretor de programas especiais, Ricardo Morishita, disse que o órgão continuará recebendo as reclamações e dando as orientações de como prosseguir na luta contra o pacote. A possibilidade de uma ação civil pública contra as determinações do governo também está sendo estudada. “O que está acontecendo é um retrocesso. Há anos lutamos para preservar o direito do consumidor e agora vem isso. É um direito e uma garantia fundamental que não podem ser suprimidos”, conclui. Para Délio Malheiros, coordenador do Procon da Assembléia Legislativa de Minas, a atitude a ser tomada é uma só: “Vamos desconsiderar essa MP e orientar as pessoas a entrar na Justiça e encaminhar as ações como se nada tivesse ocorrido.”

Truculência e arbitrariedade é pouco para Marilena Lazzarini, coordenadora executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). “Não vamos aceitar esta inconstitucionalidade”, protesta. Uma outra estratégia é mobilizar a sociedade e promover uma caminhada em Brasília contra a MP do apagão. “O Código foi uma conquista”, diz Lazzarini. Juristas e entidades de defesa do consumidor estão dispostos a manter não só a Justiça na tomada, mas assegurar à população o direito de buscar alternativas às decisões de governo nos tribunais.

Colaborou Ines Garçoni

Festival de besteiras

“CPI a gente sabe como tratar. Mas e a crise de energia?” José Jorge, ministro das Minas e Energia

“No meu tempo de adolescente, quando tinha blecaute por causa da Segunda Guerra (1939/45), foi a época em que São Paulo e Rio estiveram mais seguros” José Gregori, ministro da Justiça

O investimento caiu muito nos governos Collor e Itamar, mas foi recuperado no meu e continua em recuperação” Presidente Fernando Henrique.

 

“Meu nome é Pedro, mas não sou São Pedro” Pedro Parente, presidente da Câmara de Gestão da Crise de Energia.

“Vamos pôr banda na porta do cara e cortar a luz” Mauro Arce, membro da Comissão do apagão e secretário de Energia de São Paulo

“As empresas do Sudeste deveriam ir para o Norte ou o Sul, onde sobra energia” Alcides Tápias, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior

“Quem vencer na Justiça vai ganhar de presente o apagão” David Zylbersztajn, diretor-geral da ANP

Saída pelo cano

Se cair nas graças da população, o cano elétrico inventado pelo gaúcho Abrahão Lincoln de Lima vai revolucionar os chuveiros. Trata-se de uma resistência dentro de um tubo de PVC instalado no lugar do tradicional cano metálico. Ele pré-aquece a água, diminuindo o consumo de energia em 40% no verão e 9% no inverno. Uma família de quatro pessoas pode economizar em torno de R$ 8 na conta de luz com banhos diários de 15 minutos. O aparelho está nas mãos da Aneel e da Eletrobrás para análises. Hoje ele é feito sob encomenda, mas o inventor diz que negocia a fabricação com “uma grande empresa” cujo nome ele não revela.