A pele alva sem maquiagem destaca os olhos acentuados por cílios postiços como os de uma boneca. O batom vermelho e a roupa preta injetam dramaticidade fundamental à personagem. Assim, Bibi Ferreira fecha os olhos, respira fundo e encarna mais uma impressionante metamorfose, transformando-se na lendária cantora portuguesa Amália Rodrigues, morta em 1999, aos 79 anos, por um câncer no pulmão. Após duas horas de ensaio, a disposição de Abgail Izquierdo Ferreira é invejável. “A voz de Amália era perfeita. Estudo Amália há três meses. Primeiro entendi, depois senti, agora faço uma minuciosa apuração, sílaba por sílaba”, descreve a atriz, às vésperas de completar 79 anos de idade e 60 de profissão. A estréia de Bibi vive Amália acontecerá na sexta-feira 1º, quando inaugura a Ribalta, a mais nova casa de espetáculos do Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca. Será uma temporada de apenas três dias, alongando-se em São Paulo por mais quatro, a partir da quinta-feira 7, com outra inauguração, a do Espaço Cultural Santo Agostinho. Depois de outras capitais brasileiras, a turnê termina em outubro, em Lisboa.

O namoro artístico entre Bibi Ferreira e Amália Rodrigues começou nos anos 80, durante a temporada de Piaf, a vida de uma estrela da canção, assistido 12 vezes pela intérprete de fados. Passado o impacto causado pela filha do antológico ator Procópio Ferreira, há três anos Amália confidenciou ao amigo e conterrâneo Thiago Torres da Silva o desejo de ver Bibi representando sua vida no palco. “Começamos a montar o espetáculo com Amália ainda viva. Nossa intenção era lhe fazer uma vontade”, recorda Thiago, 31 anos, que assina o texto e a direção do espetáculo, patrocinado pela Petrobras e pela BrasilTelecom. Mas foi só no Natal de 2000 que a atriz brasileira se encontrou com Thiago em Lisboa e lhe entregou um bem-cuidado rascunho do espetáculo. Agora, enquanto assiste aos ensaios, o jovem português emociona-se a cada vez que a vê em cena. “Bibi tem um talento inexplicável. Faz uma personagem muito verdadeira”, exulta o diretor, que garimpou todo o texto em entrevistas de Amália.

Sob a direção musical do maestro Nelson Malim, o repertório reúne 24 canções, entre elas as antológicas Casa portuguesa, Coimbra e Tiro liro liro. Como não poderia deixar de ser, a atmosfera lusa é acentuada por um acordeão e pela melancólica guitarra portuguesa. O projeto ainda inclui o lançamento do musical em DVD, além de uma fotobiografia. Não é difícil lembrar os melhores momentos de sua carreira, que ela recorda com a mesma precisão das sensações atuais. Um deles é Gota d’água, de autoria de Chico Buarque e do ex-marido Paulo Pontes, morto aos 36 anos. “Na época, estava neste mesmo estado de graça de agora”, compara ela. Outras passagens mágicas foram em My fair lady e Hello Dolly. Bibi também se gaba de ter descoberto sua vocação muito cedo. Aos três anos já era uma estrelinha da mesma companhia pela qual sua mãe, a bela corista Aída Izquierdo, percorria as capitais da América do Sul.

Estreou no palco em 1941 na comédia La locandiera, de Goldoni, com a personagem Mirandolina, levada pelo pai Procópio. Hoje, mesmo tendo protagonizado dezenas dos momentos mais fulgurantes do teatro nacional, a atriz garante que não cultiva o passado nem sente nostalgia. “Trato de ir para a frente.” Mas quando o assunto é o pai, seus olhos ficam marejados. “Era uma pessoa maravilhosa, um papo encantador.” Da mãe, a recordação é igualmente carinhosa, mas pontuada de rigidez. “Mamãe era muito exigente, queria que eu fosse perfeita.” Graças a ela, no entanto, Bibi nunca soube dizer a palavra cansaço. É estranho, portanto, principalmente para alguém com seu inabalável vigor, confessar que, quando não está às voltas com personagens e direções – no momento assina quatro peças em cartaz no Rio –, não faz absolutamente nada. “Só penso e observo”, segreda.

Fotofobia Seus cuidados pessoais se resumem a vitaminas e sais minerais, arroz e feijão diariamente, permanentes óculos escuros para aliviar a fotofobia e muita calma. Além de duas cirurgias plásticas: nariz e lifting em 1970 e um retoque em 1980. Em 1992, levou um susto quando consultou o endocrinologista José Carlos Cabral. Bibi nunca havia feito uma mamografia e saiu do consultório com um pedido de exame, que passou tempos esquecido na gaveta até resolver fazê-lo. Encontrou o que não queria e no dia seguinte extraiu um tumor maligno do seio.

Submeteu-se a 28 aplicações de radioterapia e se livrou do câncer. Nunca mais deixou de fazer acompanhamentos periódicos. “Dr. Cabral me salvou”, exulta. Com três casamentos desfeitos, atualmente ela divide seu apartamento na avenida Rui Barbosa, zona sul do Rio, com a filha Thereza Christina, dois netos, a nora de um dos netos e dois bisnetos. O xodó é Louise, a bisneta de dez anos, a única pessoa conhecida que Bibi Ferreia diz ser tão agradável quanto seu pai.