Na história dos Estados Unidos, existem constatações bastante curiosas. Uma delas está na disposição de ganhar sempre, mesmo perdendo. Pearl Harbor (Pearl Harbor, Estados Unidos, 2001), cartaz nacional na sexta-feira 1º, reforça esta idéia do eterno triunfo de um país onde a palavra perdedor soa como grande ofensa. A superprodução de US$ 145 milhões estrelada por Ben Affleck – que abriu mão de parte de seu cachê para não elevar ainda mais o orçamento – reconstitui de forma épica o célebre e devastador ataque, em dezembro de 1941, dos japoneses à base militar americana instalada no Havaí. O bombardeio completa 60 anos em dezembro próximo. A ofensiva surpresa obrigou os relutantes americanos a entrar na Segunda Guerra Mundial, depois de terem parte de sua frota dizimada. No episódio, perderam 21 navios, 188 aviões foram destruídos, 159 danificados e 2.403 pessoas morreram, entre as quais 68 civis. Dos mais de 350 aviões japoneses, apenas 29 foram abatidos. O filme não se furta a dizer o já conhecido. À época, as autoridades americanas subestimaram o poderio japonês, ignoraram sinais captados por radares, fatos confirmados no ótimo documentário Pearl Harbor: legado do ataque.

Mas a produção da Disney preferiu exaltar o espírito de superação dos derrotados, convertidos em heróis ultrajados. Ainda que não pinte os japoneses como monstros, Pearl Harbor leva o espectador a torcer pelos americanos. Só que, em vez da Sétima Cavalaria, os bravos pertencem a batalhões de aviação de elite e fazem suas proezas a bordo de P-40s e B25s e até de um Spitfire da Real Força Aérea Inglesa, no qual o piloto Rafe (Affleck, cada vez mais canastrão) serve como voluntário. Na fita, o império do bem ganha ímpeto com o presidente Franklin Roosevelt (John Voight, em boa caracterização) e com o altruísmo de seus exímios aviadores, capazes de perseguir os caças Zero japoneses entre edificações destruídas, como se estivessem numa cena de Guerra nas estrelas. Para iniciar a contra-ofensiva, Roosevelt levanta-se da cadeira de rodas e, numa espécie de êxtase patriótico, faz aqueles típicos discursos ufanistas. Suporta-se a patriotada porque Pearl Harbor é acima de tudo um bom filme de guerra, ainda que a Disney tenha tentado vendê-lo como uma história de amor, nos moldes de Titanic.

Grandiosidade – A comparação é inevitável. Por trás do evento histórico trágico desencadeiam-se as paixões açucaradas de dois grandes amigos e ases da aviação, Rafe e Danny Walker (Josh Harnett), pela mesma enfermeira Evelyn (Kate Beckinsale). Uma xaropada tão rasa quanto as águas que cercavam Pearl Harbor, só que sem Celine Dion na trilha sonora. Mas não é só no romance que Pearl Harbor lembra Titanic. As cenas do afundamento dos porta-aviões USS Arizona – até hoje um túmulo de 1.100 homens –, USS West Virginia e USS Oklahoma são similares na grandiosidade. Para conseguir o efeito, foram utilizadas réplicas-cenários de até 45 metros dos navios originais, criadas a partir de miniaturas em resina, que consumiram mais de três toneladas de aço. Elas foram colocadas em tanques igualmente gigantescos e depois afundadas de ponta-cabeça, com tomadas de 150 marinheiros-dublês despencando de seu deck. No afundamento dos navios, foram gastos quatro mil galões de gasolina e 700 bananas de dinamite. O diretor Michael Bay enaltece o próprio feito. “Foi a maior explosão que já vi em minha vida.” Embora a grande maioria dos efeitos especiais tenha acontecido ao vivo, os detalhes ganharam mais veracidade através dos computadores da Industrial Light & Magic, de George Lucas, contabilizando ao todo 190 tomadas digitais.

Algumas cenas de batalha remetem à famosa sequência inicial de O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg. A câmera acompanha uma bomba até sua explosão no convés de um navio e, por quase meia hora, o barulho de balas crispadas permanece na tela simultaneamente ao jorro de corpos dilacerados e queimados. “Olhando embaixo da minha cadeira de diretor, lembro-me de ter visto antigas marcas de balas no cimento”, conta Bay. O cineasta, porém, optou por uma visão reducionista da batalha. Não deu destaque algum à ação dos cinco minissubmarinos I-24-TOU, que mais tarde provaram ter sido decisivos na vitória japonesa.

Inferno – Talvez por razões cinematográficas, tenha preferido privilegiar o intenso bombardeio que castigou a base. Nas filmagens foram usados 16 aviões, entre originais e réplicas, comandados por pilotos experientes. O único Zero original é um modelo mais moderno que os da época. Multiplicados digitalmente na tela, os caças japoneses convertem a base militar encravada no paraíso havaiano num inferno de morte e dor. O filme, no entanto, poderia ter terminado com o fim da batalha. Mas prolonga-se desnecessariamente, arrastando um episódio restrito a aficionados: a missão quase suicida liderada pelo coronel James H. Doolittle (Alec Baldwin) na qual, em abril de 1942, um pequeno grupo de 16 pesados B-25 bombardeia indústrias em Tóquio. Afinal, apesar da fragorosa derrota histórica, o americanérrimo Pearl Harbor tinha de ter embutido uma revanche. 

Mergulho na história verdadeira

Desde que foi afundado por uma bomba de 1.200 quilos, durante o ataque de Pearl Harbor, o navio USS Arizona tornou-se o maior símbolo do que o ex-presidente Roosevelt batizou de o “dia da infâmia”. Sobre seus destroços foi construído um memorial, mas até hoje ninguém se preocupa com o meio milhão de galões de petróleo que vaza lentamente de seus tanques. Para quem visita o monumento, o fenômeno é tratado como “as lágrimas do Arizona”. Em Pearl Harbor: legado do ataque, contudo, documentário que o canal pago National Geographic exibe neste domingo às 21h – com reprise no sábado 2, às 22h –, as “lágrimas” são vistas de outra maneira. O explorador Bob Ballard, o mesmo que localizou o histórico navio Titanic, pela primeira vez colocou mergulhadores operando câmeras-robôs no couraçado e mostrou o perigo do desastre ambiental. Considerado o documentário mais completo sobre o assunto, ressuscita fatos que poderiam ter alterado os rumos do combate. Demonstra, por exemplo, que o primeiro tiro no Pacífico veio dos americanos, exatamente às 6h53, uma hora antes de as rádios japonesas emitirem o sinal de ataque Tora! Tora! Tora! (Tigre! Tigre! Tigre!) e minutos antes do início do bombardeio, quando um submarino japonês foi alvejado.

Pearl Harbor: legado do ataque também questiona por que os americanos não se movimentaram mais, mesmo sabendo da presença japonesa na área. Com filmes raros de época, ainda mostra o treinamento japonês para a missão – feita com aviões obsoletos e desativados –, bem como o espírito kamikaze dos pilotos dos minissubmarinos. Para completar, reúne veteranos dos dois lados, para juntos relembrarem histórias, claro, sempre cheias de descrições comoventes. Reverenciam em seus depoimentos companheiros perdidos e heróis reais, a exemplo do marinheiro negro Dorie Miller, que não só salvou um oficial como, de posse de uma metralhadora calibre 50, que nunca tinha usado, atingiu três aviões japoneses. No filme da Disney, Miller, que acabou morrendo num outro combate durante a Segunda Guerra, é interpretado por Cuba Gooding Jr. Entre várias histórias surpreendentes e trágicas no documentário, brotam cenas de uma guerra tão real que todo esforço hollywoodiano do filme de Michael Bay, por maior que seja, não consegue criar.