Criador da Bienal de São Paulo num momento em que a arte brasileira, a contragosto dos acadêmicos, se deixava influenciar pelo abstracionismo em voga na Europa e Estados Unidos, o empresário e mecenas paulistano Francisco Matarazzo Sobrinho, o Ciccillo (1898-1977), era pródigo em frases cunhadas à altura de sua ousadia e determinação. “Não olho para trás, só penso no futuro e sei que ele é certo”, dizia. Afinados com suas idéias arrojadas, os curadores da mostra Bienal 50 anos – uma homenagem a Ciccillo Matarazzo, em cartaz até o dia 29 de julho, no Pavilhão da Bienal, em São Paulo, resolveram marcar o meio século de existência do evento com uma exposição que olha firme para a frente. Embora o passado glorioso de 24 edições esteja bem representado no núcleo histórico – que reúne 50 obras premiadas em bienais anteriores, entre elas Unidade tripartida, do suíço Max Bill, melhor escultura estrangeira na primeira bienal, de 1951 –, a grande fatia dos cinco mil metros quadrados do terceiro andar do Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, foi ocupada pelas gigantescas instalações e fotos do segmento contemporâneo. Mesmo porque, na busca do impacto calculado os artistas adeptos das novas linguagens parecem não se preocupar muito com a economia de espaço.

Poética urbana – Em todo caso, o gigantismo dos trabalhos faz sentido já que o tema escolhido sob o título Rede de tensões é a megalópole. Tema, aliás, da 25ª Bienal, que deveria acontecer este ano e foi adiada para 2002. Para refletir a realidade das grandes cidades, três curadorias diferentes convidaram artistas, designers e arquitetos, selecionando 34 projetos. Daniela Bousso, que divide a curadoria de artes visuais com Maria Alice Milliet, explica que a temática não poderia ser mais apropriada. “Ciccillo era um homem de prospecção e nesta homenagem queremos pensar os rumos da contemporaneidade, abrir espaço para a nova visualidade que o começo do milênio vai propor.” Esta poética urbana encontra sua melhor tradução nas obras ambientais, através das quais se tenta superar os antigos suportes da tela, do desenho e da escultura pelo uso da fotografia e do vídeo, ou mesmo de materiais e objetos vindos da própria realidade.

Como já virou lugar-comum nas grandes mostras do gênero, as instalações dominam o núcleo contemporâneo. Chama a atenção, por exemplo, o trabalho Trilhos urbanos, dos arquitetos paulistanos José Francisco Magalhães e José Magalhães Jr., um trecho de 36 metros de estrada-de-ferro, pesando cerca de 20 toneladas, que termina num arco em direção ao teto do pavilhão. Mais adiante, 1+1 (taxidermia e outdoor), do paulista Lucas Bambozzi, causa surpresa com um táxi branco, posicionado diante de uma parede de arestas também brancas, que simula um outdoor de placas móveis. Quem entra no carro assiste no retrovisor depoimentos de taxistas falando de situações reais e constrangedoras provocadas por passageiros. No outdoor virtual, de um lado são projetadas cenas documentais de travestis se masturbando ou pivetes fumando crack; do outro, ambientes públicos como uma garagem de edifício e uma sala de espera de aeroporto. Conforme o ponto de observação, as duas imagens se fundem. “São situações privadas que causam estranhamento por estarem acontecendo em lugares públicos”, explica Bambozzi.

Além do táxi e dos trilhos de trem, a exposição ainda exibe uma parede de 24 metros, feita de placas de aço, que imita a fachada espelhada de um prédio. Sua autora, a mineira Ana Tavares, imprimiu nelas palavras que prometem amortecimento ou enlevo como lexotan, sundown e sunrise. Chamou o belo trabalho de Cityscape. “É uma parede-poema, uma miragem feita de termos que colocam as pessoas em estado sedado”, comenta Ana. Numa proposta mais cifrada, a paulista Lina Kim criou uma sala branca decorada com pequenos círculos de espelho e quatro grandes lustres de cristal, fazendo as guirlandas de contas brilhantes escoarem pelos ralos distribuídos no chão.

Equilíbrio – Dosando figuras conhecidas como o fotógrafo Miguel Rio Branco e o videomaker Éder Santos a outras em ascensão no cenário artístico, o segmento contemporâneo se revela equilibrado. Bem selecionado também é o núcleo histórico, que mostra momentos importantes do abstracionismo informal e geométrico, entre eles Plano em superfícies moduladas nº 2, de Lygia Clark, premiada na Bienal de 1957. Mas o impacto sofrido por quem entra na sala climatizada, depois de ver dezenas de instalações, não é causado apenas pela diferença de temperatura. Propostas revolucionárias como as obras cinéticas Grande móbile branco, do americano Alexander Calder, e Vibração, do venezuelano Jesus Soto, hoje parecem contidas. Além da importância do evento, a exposição comemorativa dos 50 anos da Bienal mostra, não se sabe se para o bem ou para o mal, que a escala da arte definitivamente mudou.