Antônio Carlos Peixoto Magalhães, 73 anos, é o último dos grandes coronéis brasileiros, figuras políticas que herdaram poderes e o autoritarismo das velhas capitanias hereditárias implantadas no Brasil pelos portugueses no século XVI. Em seus quase 50 anos de política, o cacique ACM acumulou fortuna e poder, primeiro servindo fielmente à ditadura militar e, em tempos democráticos, prestando favores e subjugando governantes fracos. Fez assim nas administrações dos presidentes José Sarney e Fernando Collor e, durante os seis últimos anos, mandou e desmandou no governo Fernando Henrique Cardoso. Como ministro das Comunicações de Sarney, promoveu um festival de concessões de emissoras de rádio e televisão, consolidando sua força política em todo o País e uma relação toda especial com a grande mídia nacional. Há três meses cometeu um erro fatal: confessou a três procuradores da República que tinha a lista com os nomes de todos os senadores que votaram a favor e contra a cassação de Luiz Estevão. A revelação da conversa por ISTOÉ provocou a abertura de um inquérito no Conselho de Ética do Senado para apurar a violação do painel eletrônico. Depois de promover investigações que comprovaram o crime, o Conselho aprovou na quarta-feira 23, por 13 votos a dois, o pedido de cassação de ACM e de seu parceiro na empreitada, José Roberto Arruda. Para escapar da perda dos direitos políticos por oito anos, Arruda fez um discurso simplório para comunicar a renúncia ao mandato na manhã da quinta-feira 24. O último dos coronéis, no entanto, promete barulho no pronunciamento marcado para a quarta-feira 30: vai tentar disfarçar a saída pela porta dos fundos do Senado com ataques que terão como principal alvo o presidente Fernando Henrique. Mais do que a renúncia de um parlamentar para fugir da punição pela quebra do decoro parlamentar, a queda de Antônio Carlos simboliza o fim de uma era em que, certas da impunidade, autoridades todo-poderosas julgam que as leis só valem para os outros. Uma era em que oligarcas regionais conseguiram transformar o governo federal numa extensão de seus quintais.

Caras-pintadas – O quintal do Congresso Nacional foi tomado na quarta-feira por estudantes secundaristas e universitários que pintaram o rosto de verde e amarelo para cobrar a cassação de Antônio Carlos e Arruda. No mesmo dia, milhares de jovens fizeram uma passeata nas ruas de Salvador, em que um manifestante enjaulado que usava máscara de ACM fez sucesso. Protestos também aconteceram no Rio e em São Paulo. A exemplo do processo de impeachment de Fernando Collor, mais uma vez as ruas desempenharam papel decisivo no desfecho do caso do painel no Senado. Por medo delas fracassaram as várias tentativas para que tudo acabasse em pizza. Uma canetada do presidente do Congresso, Jader Barbalho (PMDB-PA), estabeleceu na terça-feira 22 um prazo de até 15 dias para uma decisão da Mesa do Senado sobre o relatório do Conselho de Ética. Além de surpreender a cúpula do próprio PMDB, a medida reanimou ACM e Arruda, que planejavam renunciar antes da reunião do Conselho e acreditaram que o “acordão” pudesse estar sendo ressuscitado. Outra razão para isso foi a garantia que o cacique baiano recebeu de que pelo menos os senadores peemedebistas Amir Lando (RO) e Ney Suassuna (PB) votariam contra o pedido de cassação. Apesar do receio de que um voto desses, transmitido ao vivo pela TV Senado, causaria prejuízos eleitorais, a dupla de senadores estava disposta a correr o risco. Só desistiram duas horas antes da reunião, atendendo a pedidos de dirigentes do partido. “Contava com esses dois votos, mas não houve traição. Eles não resistiram, a pressão foi muito forte”, lamentou ACM. A reunião do Conselho foi um desastre para Antônio Carlos e Arruda.

Com firmeza, o senador Ramez Tebet (PSDB-MS), presidente do Conselho, rejeitou todas as manobras dos carlistas. Pau mandado de ACM, o senador Waldeck Ornélas (PFL-BA) perdeu a compostura e, com voz estridente, atacou Ramez, a quem chamou de autoritário. “Só a minha consciência é dona das minhas decisões. Quero dizer ao senhor que eu não tenho dono”, devolveu Ramez, calando Waldeck, que não pôde dizer o mesmo. O discreto senador Paulo Souto (PFL-BA) também quis mostrar serviço ao chefe e interrompeu o relator Saturnino Braga, que o corrigia por ter dito que os procuradores da República Guilherme Schelb e Eliana Torelly haviam desmentido a reportagem de ISTOÉ que revelou a conversa de ACM no Ministério Público. “Na reunião secreta, não foi isso que eles falaram…”, dizia Saturnino quando Souto o acusou de estar divulgando um depoimento sigiloso. “Se quiser, me processe, mas o senhor também ouviu. Não ouviu?”, cobrou o relator. Constrangido, Souto confirmou.

Além de perderem de goleada nos debates no Conselho, os carlistas também levaram uma surra nas votações. Dos 16 membros do Conselho, só Waldeck e Souto votaram contra o relatório de Saturnino. Atendendo a contragosto à orientação da direção do PFL, numa segunda votação os senadores Francelino Pereira (MG), Romeu Tuma (SP) e Geraldo Althoff (SC) disseram sim à proposta de abrandamento da pena para a dupla de fraudadores. A derrota acachapante no Conselho acabou de vez com a estratégia de ACM de fingir ainda ter força e repetir que iria até o fim do processo. “A batalha está perdida. Não é mais possível virar o jogo”, reconheceu Antônio Carlos no começo da noite da quarta-feira, quando informou ao presidente do partido, senador Jorge Bornhausen (SC), que renunciará na quarta-feira 30. Logo depois, Bornhausen recebeu telefonema de Arruda comunicando que jogaria a toalha na manhã seguinte. Arruda também ligou para Jader e marcou café da manhã para mostrar o discurso de renúncia e acertar detalhes da sessão, em que levou uma claque. Jader nada informou aos líderes do PMDB, Renan Calheiros, e do PSDB, Sérgio Machado (CE), integrantes da chamada “turma da paçoca”. Trata-se do grupo que se reuniu várias vezes para impedir que manobras de ACM esvaziassem o trabalho do Conselho e ficou conhecido depois de virar a madrugada em torno de uma tigela de paçoca de farinha com carne-seca, na véspera da apresentação do relatório de Saturnino.

Depois de ir à casa de Bornhausen, onde estava também o prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, ACM foi se encontrar com o vice-presidente da República, Marco Maciel, na residência do deputado Heráclito Fortes (PFL-PI). Informou Maciel da renúncia e avisou que vai aproveitar o discurso de quarta-feira para atacar Fernando Henrique. Recebeu apelos do vice-presidente e de Bornhausen para conter sua artilharia. Na maior cara-de-pau, anunciou ainda que vai percorrer o País pregando a ética e a moralidade pública. “Ele precisa tomar cuidado, porque senão será recebido com ovos pela população revoltada com seu comportamento no Senado”, alerta o senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT). Há três meses, o cacique baiano vestiu a pele de cordeiro na expectativa de não ser punido no Senado. Durante esse tempo, deixou de atacar o governo e Jader Barbalho. Promete agora voltar a ser o lobo de sempre: “Meu maior sofrimento nesse período foi ter ficado calado.” Ele chegou a ser aconselhado por correligionários a disparar a metralhadora giratória no comício que fará em Salvador na próxima quinta-feira. O problema é que já estará sem mandato – e imunidade – e corre o risco de ser processado por quem for alvo de seus petardos. Horas antes de viajar para a Bahia, pretende assistir à posse no Senado do suplente Antônio Carlos Magalhães Júnior – o herdeiro sem gosto e talento políticos que sobravam no falecido irmão Luís Eduardo Magalhães.

Levante baiano – ACM volta a uma Bahia diferente, com manifestantes nas ruas e uma oposição fortalecida que pretende barrar seus planos de continuar mandando no Estado. Tem concorrente até dentro do PFL, se insistir em disputar mais uma vez o governo da Bahia. O senador Paulo Souto vem dizendo a amigos que a vez é sua e não abre mão de tentar voltar ao Palácio de Ondina. A grande arma de Antônio Carlos – usar todo o aparelho de Estado para ameaçar e acuar adversários – perdeu a eficácia. Depois de apanhar da Polícia Militar, o movimento estudantil cresceu muito na Bahia e rompeu a barreira que o impedia de protestar em frente à casa de Antônio Carlos. Animada pela reação dos baianos que ganharam as ruas, as oposições prometem continuar a guerra contra o coronel baiano até apeá-lo do poder no Estado. “Chegou a hora de enterrar o coronelismo e acabar com a ditadura na Bahia”, diz a deputada estadual Alice Portugal (PCdoB). Além da possibilidade de ser derrotado nas urnas, a intenção de ACM de disputar eleições também corre risco.

Cassação – Parlamentares como o deputado Waldir Pires (PT-BA) pretendem recorrer ao Supremo Tribunal Federal contra a interpretação da Mesa do Senado de que os direitos políticos de Antônio Carlos e Arruda ficam preservados com a renúncia. Eles vão se basear no Decreto Legislativo 16, que regulamenta o artigo 55 da Constituição e diz que a renúncia de parlamentar sob “a investigação por qualquer órgão do Poder Legislativo” ficará suspensa até a conclusão do processo de cassação de mandato. A renúncia só teria eficácia para efeito de preservação de direitos políticos se no final do processo o parlamentar fosse absolvido. ACM e Arruda foram investigados pelo Conselho de Ética, que comprovou que os dois participaram da fraude no painel eletrônico. A renúncia da dupla, portanto, pode ter sido inócua e eles acabarem tornando-se inelegíveis por oito anos.

A DERROCADA DE ACM COMEÇOU COM A REPORTAGEM DE ISTOÉ QUE REVELOU AS CONVERSAS DO SENADOR COM PROCURADORES DA REPÚBLICA
19/02 ACM reúne-se com os procuradores Luiz Francisco de Souza, Guilherme Schelb e Eliana Torelly. Faz uma série de acusações contra o presidente Fernando Henrique, Jader Barbalho, Eliseu Padilha e Eduardo Jorge, entre outros. E conta que tinha uma lista com os votos dos senadores na sessão de cassação de Luiz Estevão (PMDB-DF), no ano anterior. A reunião é gravada por Luiz Francisco.
22/02 ISTOÉ publica, em sua edição 1639, as
conversas de ACM com os procuradores.
23/02 Irritado com as denúncias de ACM publicadas em ISTOÉ, o presidente Fernando Henrique retalia e demite os ministros Rodolpho Tourinho, das Minas e Energia, e Waldeck Ornélas, da Previdência, ligados ao cacique baiano.
28/02 O PT e o PPS pedem à Mesa do Senado que investigue o sistema de votações, para ver se é possível fraudá-lo.
02/03 O perito da Unicamp Ricardo Molina, depois de examinar a gravação com as conversas entre ACM e os procuradores, confirma a veracidade da fita.
03/03 ISTOÉ publica, em sua edição 1640, transcrições de vários trechos das fitas e os laudos de Molina. A fita de Luiz Francisco se transforma em prova contra ACM.
13/03 Os jornalistas de ISTOÉ, Andrei Meireles, Mino Pedrosa e Mário Simas Filho, depõem na Comissão de Ética do Senado e confirmam a íntegra das reportagens publicadas. O procurador Luiz Francisco de Souza também depõe e reafirma a veracidade das fitas e todo o teor do que foi publicado por ISTOÉ. Os procuradores Guilherme Schelb e Eliana Torelly também depõem, mas não respondem às perguntas dos senadores.
13/03 O deputado Roberto Brant (PFL-MG) e o senador José Jorge (PFL-PE) tomam posse, respectivamente, nos Ministérios da Previdência e das Minas e Energia.
14/03 Brant demite, por ordem de FHC, o presidente do INSS, Crésio de Matos Rolim, pessoa da confiança de ACM.
16/03 A faxina contra os apadrinhados de ACM continua. É demitido Juvêncio Barbosa, diretor da Dataprev.
19/03 O demitido agora é Hélio Victor Ramos Filho, secretário- executivo do Ministério da Previdência.
21/03 Cai outro fiel seguidor de ACM, o presidente da Eletrobrás, Firmino Sampaio.
22/03 Mais um apadrinhado é demitido, Xisto Vieira, secretário de Energia do MME.
27/03 Laudo preliminar da Unicamp revela indícios de fraude no painel do Senado.
28/03 Em sessão secreta, os procuradores Guilherme Schelb e Eliana Torelly mudam de posição e confirmam à Comissão de Ética do Senado que ACM falou mesmo que tinha uma lista com os votos dos senadores na cassação de Luiz Estevão.
07/04 Em sua edição 1645, ISTOÉ revelou o envolvimento do líder do governo, José Roberto Arruda, e da diretora-geral do Prodasen, Regina Célia Borges, no escândalo da lista.
09/04 Da tribuna, Arruda tentou desmentir a reportagem e teve apoio de ACM.
16/04 O laudo final da Unicamp confirma que houve violação do painel do Senado na votação da cassação de Luiz Estevão.
17/04 Jader Barbalho anuncia oficialmente que o painel do Senado foi violado.
19/04 A ex-diretora do Serviço de Processamento de Dados do Senado (Prodasen), Regina Célia Peres Borges, em depoimento na Comissão de Ética, confirma o que havia confessado três dias antes à comissão de investigação do Senado: fraudou o painel do Senado a mando de ACM e Arruda.
21/04 Em sua edição 1647, ISTOÉ mostra que a farsa montada por ACM e Arruda para desmentir o que a revista havia publicado em fevereiro estava desmontada, pelo depoimento de testemunhas e pelos laudos dos peritos.
24/04 Arruda confessa da tribuna do Senado que, por ordem de ACM, tinha mesmo mandado a diretora do Prodasen fraudar o painel eletrônico.
26/04 Em depoimento de mais de seis horas, acompanhado pela tevê por todo o País, ACM tenta vender sua própria versão dos fatos, mas não convence os senadores.
27/04 Arruda depõe na Comissão de Ética e desmente ACM. Os senadores decidem fazer uma acareação entre ACM, Arruda e Regina Borges na semana seguinte.
28/04 Em sua edição 1648, ISTOÉ denunciava a intenção de ACM em renunciar para salvar sua carreira política.
03/05 ACM, Arruda e Regina são acareados na Comissão de Ética e mantêm suas versões repletas de mentiras. O relator do caso, senador Roberto Saturnino Braga (PSB-RJ), sai da acareação decidido a pedir, em seu relatório final, a cassação dos dois. O senador Pedro Simon (PMDB-RJ), último a fazer perguntas, afirma: “A verdade é que não saberíamos dessa história se a ISTOÉ não a tivesse publicado.”
10/05 Uma manifestação em Salvador, pedindo a cassação de ACM, é reprimida violentamente pela PM baiana.
23/05 A Comissão de Ética do Senado aprova por 13 votos a dois o relatório de Saturnino Braga, que pede a cassação de ACM e Arruda.
24/05 Arruda renuncia.