O Paraguai não tem mar, mas felizmente conta com uma Marinha com tradição constitucionalista. Na madrugada desta sexta-feira 19, a infantaria naval exerceu um papel crucial na contenção de uma tentativa de golpe de Estado perpetrado por um grupo de oficiais e policiais partidários do general Lino Cesar Oviedo, ex-comandante do Exército. Os oviedistas, instigados por seu líder refugiado em algum ponto do território argentino nas proximidades da fronteira paraguaia, tomaram o regimento de cavalaria e o quartel-general do I Corpo do Exército – ambos de histórica tradição golpista – por volta das 22 horas de quinta-feira 18, iniciando o movimento que culminaria com o bombardeamento, por blindados de fabricação brasileira, da sede do Congresso Nacional, duas horas depois.
Nesse meio tempo, porém, o presidente Luis González Macchi deixara o Palácio do Governo para se refugiar no Comando da Armada, onde articulou a resistência com o apoio do almirante José Jamón Ocampo Afora, comandante das Forças Militares – o maior posto da atual estrutura hierárquica castrense paraguaia – para rechaçar o golpe. Os oviedistas haviam declarado seu objetivo principal de derrubar o governo num manifesto lido por um grupo de militares que tomou a Rádio Monte Carlo no início da noite.
Apresentando-se como “Movimento Patriótico Tenente-Coronel Fulgencio Yegros”, herói nacional da indepêndencia em 1811, os rebeldes afirmaram agir de acordo com o artigo 138 da Constituição do Paraguai, que garante o direito de rebelião contra um presidente que não cumpra os preceitos constitucionais. Um dispositivo legal que só poderia conviver realmente com o sistema político paraguaio. Até a meia-noite de quinta-feira 18, o clima era de confusão no Congresso Nacional, onde grande número de parlamentares e integrantes do governo chegava para acompanhar os acontecimentos. As emissoras de televisão transmitiam tudo ao vivo, até que foram retiradas do ar, aumentando a apreensão geral. As últimas cenas transmitidas eram dos blindados se aproximando do prédio. Ouviu-se então o ronco dos aviões Xavante da Força Aérea (também de fabricação brasileira) sobrevoando os blindados sublevados e os quartéis do I Corpo do Exército na periferia de Assunção. Os blindados dispararam alguns tiros contra o Congresso Nacional, um deles abrindo um rombo de dois metros de diâmetro sobre a sacada principal, quando um grupo de oficiais da Marinha armados de fuzis AR-15 abriu fogo contra os rebeldes.

Jornal atingido – O intenso tiroteio, com canhonaço e rajadas intermitentes de metralhadoras, forçou os rebelados a se retirarem com seus blindados, cerca de dez unidades, muitos deles abandonados no caminho de retorno ao quartel na localidade de Cerrito. Na retirada, alguns deles dispararam contra a sede do jornal Diario Popular, que havia espalhado seus caminhões de distribuição nas principais avenidas de acesso ao centro da capital na tentativa de bloquear os amotinados.
Às suas costas, os rebeldes deixaram três feridos. Um jovem e um homem idoso foram atingidos, ambos no ombro esquerdo, sendo liberados depois de medicados. A jovem Maria Cristina Ullon, 21 anos, irmã do vice-ministro das Finanças, Julio Ullon, levou um tiro na perna esquerda quando saiu à porta de sua residência para verificar o movimento. Foi hospitalizada na Policlinica Policial e seu estado não é grave.
Repelido o ataque, imediatamente o presidente Macchi decretou a vigência do Estado de Emergência por 30 dias, o que permite a prisão de suspeitos sem a necessidade de expedição de mandados judiciais. Ao nascer do dia, já estavam detidos 35 oficiais da ativa do Exército que aderiram ao movimento iniciado por oficiais da reserva com altos cargos no governo do general e ex-ditador Alfredo Stroessner (1954-1989), atualmente exilado em Brasília, depois de derrubado por um golpe militar em 1989.
O comandante da Força Aérea, César Rafael Cramer, condenou a rebelião e convocou os militares da ativa a desterrarem definitivamente “os inescrupulosos a serviço de uma causa liderada por um demente”, numa nada simpática alusão a Oviedo. Cramer colocou o dedo na ferida ao denunciar que os envolvidos no golpe são financiados pelo narcotráfico e pela máfia de contrabandistas que anteriormente controlava o governo paraguaio. Em 1996, Oviedo era comandante do Exército e tentou um golpe contra o então presidente Juan Carlos Wasmosy. Afastado, candidatou-se à Presidência pelo Partido Colorado, mas perdeu a indicação depois de ter sido condenado a dez anos de prisão por um tribunal militar. Seu vice, Raúl Cubas, foi eleito presidente em 1998, soltou Oviedo, que passou a ser a eminência parda do governo. Mas em fevereiro do ano passado, Cubas e Oviedo foram acusados pelo assassinato do vice-presidente José María Argaña, inimigo de ambos. A crise terminou com a renúncia de Cubas, que se exilou no Brasil, e a fuga de Oviedo, que foi para a Argentina.

O governo do presidente Macchi, além de procurar promover uma reforma de Estado para consolidar a democracia no país, está movendo uma campanha enérgica contra o narcotráfico. Recentemente, o assessor legal da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), Cezar Nuñes Alarcón, foi afastado do cargo, acusado de envolvimento com o narcotraficante Nestor Baez Alvarenga, que está sendo caçado pela polícia. O dinheiro das drogas, segundo Cramer, financia os militares oviedistas e um grupo de parlamentares que os apóia. A partir da madrugada de terror desta sexta-feira, quando as ruas de Assunção ficaram subitamente desertas enquanto se ouvia o troar dos canhões e o matraquear dos fuzis no largo formado pelas praças das Armas e Juan Salazar, que ficam defronte ao Congresso Nacional, o governo ganhou condições de promover uma limpeza definitiva nas Forças Armadas.

Sem tropas de terra – O fiasco do golpe começou a se desenhar quando fracassou a tentativa de tomada do Comando Nacional de Polícia, quartel que fica no outro lado das duas praças. O comissário Wilson Ojeda, que tentou assumir o comando da unidade policial, foi preso juntamente com outros sete policiais, pelo diretor-geral de Ordem e Segurança (Pope), inspetor Miguel Angel Rojas, numa manobra estratégica que impediu que os blindados contassem com o apoio de tropas a pé quando atacaram o Congresso Nacional. Nessa altura dos acontecimentos, o ministro do Interior, Walter Bower, desconfiava do envolvimento do comandante da Polícia Nacional, Casto Roberto Guillén, que estava desaparecido desde o início da noite e só foi dar as caras no quartel depois que Rojas controlou a situação. Por via das dúvidas, Bower na mesma hora destituiu Guillén e colocou Rojas no seu lugar.
Dessa forma, quando os tanquistas depararam com a resistência armada dos fuzileiros navais, a fuga desesperada era a única alternativa possível. Criada pelo primeiro presidente regularmente eleito do Paraguai, Carlos Antonio López, a Marinha foi fiel à sua herança constitucionalista e mostrou que tem sua razão de ser no atual contexto político institucional do país. Contando com apenas 1.100 oficiais e subalternos, o que corresponde a cerca de 20% do total das Forças Armadas em que o Exército predomina com perto de 70% do contingente fardado, os marinheiros foram mais uma vez os “heróis salvadores da pátria”, como seus comandantes costumam repetir em seus discursos inflamados.
Atualmente, a Marinha do Paraguai não conta com nenhum navio de porte. Seus dois últimos barcos de guerra, adquiridos para a Guerra do Chaco, em 1929, foram transformados em museu naval. Dispõe apenas, como enumera modestamente seu comandante, vice-almirante Miguel Ángel Candia Fleitas, de 15 lanchas de porte médio e dezenas de pequenos barcos para patrulhamento dos rios que fazem a fronteira do Paraguai com o Brasil, a Argentina e a Bolívia. “Mas estamos empenhados na defesa constitucional e das autoridades legitimamente constituídas”, disse ele.
Ao retomar suas rotinas na manhã de sexta-feira 19, muitos paraguaios que foram dormir tranquilos e acordaram sem nada saber dos acontecimentos da madrugada depararam com os marinheiros em fardas de combate guarnecendo o Congresso Nacional, o Palácio do Governo e as principais ruas do centro de Assunção. O presidente Macchi, que continuava refugiado no quartel do Comando da Armada, onde recebia seus ministros para despacho, convocara para as 11 horas uma sessão do Congresso Nacional para referendar seu decreto, instituindo o regime de emergência no Paraguai, o que, pela Constituição, deve ser aprovado pelo Legislativo 24 horas depois de assinado pelo Executivo.

Solidariedade – Ao raiar do dia, todos os comandantes militares já haviam manifestado sua fidelidade ao presidente Macchi. O porta-voz da embaixada americana no Paraguai, James Dieckmeyer, divulgou uma nota dizendo que “Washington condena energicamente a sublevação militar desta noite e insta as unidades militares e as forças políticas e sociais e apoiar as autoridades constitucionais e democráticas do Paraguai”. O governo brasileiro, por sua vez, emitiu uma nota em que manifesta sua “veemente condenação a essa aventura impensada que pôs em risco as instituições e o processo democrático no Paraguai e saúda o comportamento responsável das Forças Armadas, da Polícia e da cidadania, que permitiu que o governo do presidente González Macchi sufocasse rapidamente o movimento, sem perda de vidas”. O secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), César Gaviria, também manifestou seu apego à democracia. Apoios verbais importantes, mas o que realmente garante no momento a manutenção dos direitos constitucionais no Paraguai é uma pequena tropa com menos de 30 fuzileiros navais capaz de enfrentar blindados com fuzis leves.