Encurralado por um processo de impeachment, na terça-feira 16 o prefeito de São Paulo, Celso Pitta (PTN), passou quase sete horas se defendendo na Câmara Municipal. Não apresentou nenhuma estratégia diferente. Desde março, quando a ex-primeira-dama Nicéa Camargo o acusou de pagar propinas a vereadores, empregar funcionários fantasmas, favorecer empreiteiras com dinheiro público e manter um caixa dois no Exterior, o prefeito e seus aliados entoam um discurso monocórdio: faltam provas à acusação. Terminado o depoimento, Pitta foi aplaudido por cerca de 100 pessoas acomodadas na galeria da Câmara. Deixou o prédio com ar vitorioso, dizendo ser candidato à reeleição. A alegria durou menos de 24 horas. Na quarta-feira 17, Nicéa Camargo, ao depor na Câmara, sacou de uma mala uma agenda pessoal do prefeito, usada durante o ano de 1997. Afirmou aos vereadores ter encontrado o livreto em uma caixa de papelão largada no banheiro de seu apartamento. O documento, de acordo com a versão de Nicéa, não foi revelado antes porque o apartamento estava em reforma e a caixa se encontrava perdida no meio de uma enorme bagunça.

Ao abrir seu baú, Nicéa pode estar exibindo as provas tão reclamadas pelos aliados do prefeito. Na agenda estão relacionados nomes de vereadores ao lado de números que indicariam as propinas pagas pelo prefeito (leia as reproduções abaixo) em troca de votos a projetos que lhe interessariam ou mesmo do arquivamento de propostas de comissões parlamentares de inquérito. No dia 21 de novembro, por exemplo, entre outros nomes, está assinalado: Brasil Vita – 75. Segundo Nicéa, a anotação representa R$ 75 mil pagos ao veterano vereador, com mais de 40 anos de mandato. Ela não soube dizer qual teria sido a contrapartida para o suposto pagamento. Vita, por sua vez, resolveu se defender rapidamente. “É uma agenda dos horários de audiências do prefeito; os números não valem nada. Foram colocados ali depois. Isso tudo é falso. Vou processar dona Nicéa e até o prefeito, se ficar provado que ele escreveu essa bobagem”, reagiu o experiente vereador. A tese da falsificação foi a tônica das respostas dadas por boa parte da bancada governista. Entre os oposicionistas, a reação foi diversa, embora todos eles defendam a necessidade de a papelada entregue pela ex-primeira-dama ser submetida à perícia. “Os documentos são importantes e não podem ser simplesmente desconsiderados”, afirma Roberto Trípoli (PSDB). Ele também não descarta a possibilidade de ser feita uma acareação entre o prefeito e sua ex-mulher.

Os aliados de Pitta se apegam à grafia de alguns algarismos e dos nomes de Armando Mellão (presidente da Câmara) e Nelo Rodolfo (hoje deputado federal) para sustentar a falsidade da agenda. “É evidente que há letras de mais de uma pessoa nessas anotações”, diz o advogado do prefeito, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira. Ele assegura que irá processar Nicéa por falso testemunho e falsificação de documentos e procurará enquadrá-la em crime de apropriação indébita. Pitta, por sua vez, não nega que a agenda seja verdadeira. Porém, questiona as anotações destacadas por Nicéa. “Essa agenda de fato é minha e estive procurando por ela, mas ali não há nada comprometedor”, afirma. “Não há nada mais normal do que um prefeito agendar encontros com vereadores de sua cidade.” O jornal Diário Popular levou cópia da agenda para a perita criminal Sílvia Aparecida de Sá e na sexta-feira 19 publicou seu parecer: a lista de vereadores e os números foram redigidos por Celso Pitta.

Coincidências – Se os dados revelados pelo diário de Pitta foram fabricados ou não, apenas uma perícia técnica oficial poderá atestar. Ainda esta semana os vereadores da Comissão Processante deverão enviar os documentos para exame grafotécnico. É a maneira científica de descobrir se uma ou mais pessoas fizeram anotações na agenda e até de saber quem escreveu o quê. Também serão feitos testes químicos para descobrir se as anotações foram feitas todas no mesmo período ou se alguns dados foram postos recentemente. Trata-se, evidentemente, de informações importantíssimas. Se ficar comprovado que os números registrados ao lado dos nomes de vereadores foram escritos em 1997, o prefeito se complicará, mesmo que as grafias sejam de pessoas distintas. Uma análise preliminar do documento apresentado por Nicéa mostra que a agenda não pode ser desconsiderada como provável instrumento de prova. Há relações entre datas, fatos e pessoas denunciadas pela ex-primeira-dama e até agora negadas pelo prefeito.

No dia 20 de março de 1997, a agenda registra: “Jantar com vereadores – 1.500.000.” Segundo Nicéa, a anotação mostraria o pagamento de R$ 1,5 milhão. Em 18 de março de 1997, a Câmara votou a rejeição de uma CPI para investigar os precatórios p

aulistanos. “Se a perícia confirmar a autenticidade dos dados, a situação do prefeito ficará muito mais difícil”, diz o líder do PT na Câmara, José Eduardo Martins Cardozo. Em suas declarações, Nicéa insiste em acusar Flávio Maluf, filho do ex-prefeito, de ter influído na nomeação de funcionários de órgãos públicos rentáveis, como o Anhembi. Pitta nega relações com Flávio. Alega ter falado poucas vezes com ele. A agenda de 1997 o desmente. Na época, o prefeito e seu padrinho, Paulo Maluf, ainda estavam de bem. Mesmo assim, a agenda registra mais encontros entre Pitta e Flávio do que entre Pitta e Paulo. Apenas de 15 a 31 de agosto, o prefeito e o filho do ex-prefeito se encontraram três vezes para jantar. Nicéa também é persistente quanto à relação de amizade entre o ex-marido e o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), presidente do Senado. Pitta nega. A agenda novamente desmente o prefeito. No dia 2 de setembro está escrito: “Mandar gravação para ACM.” No dia 4 de setembro, a agenda registra como primeiro compromisso do prefeito: “Aniversário de Antônio Carlos.” Pode ser qualquer Antônio Carlos, mas, coincidentemente, o senador baiano nasceu exatamente no dia 4 de setembro.

O resultado da perícia técnica e uma investigação mais profunda sobre o conteúdo da agenda entregue por Nicéa poderão ser mortais para a estratégia de defesa do prefeito. Além de insistir na argumentação da falta de provas, os aliados de Pitta tentam desqualificar todos os documentos que lhes são desfavoráveis e procuram não se aprofundar nas informações reveladas. Foi assim com duas listas de supostas propinas pagas aos vereadores, divulgadas por ISTOÉ na primeira semana de abril. Uma delas trazia uma relação de sete vereadores e os valores pagos mensalmente a cada um deles, bem como as datas dos supostos pagamentos. Todos os envolvidos negaram o recebimento da propina, embora as datas coincidissem com votações de interesse do prefeito. Isso, no entanto, jamais foi questionado na Câmara Municipal. A segunda lista mostrava os nomes de cinco vereadores que negociariam diretamente na prefeitura e apontava outros que seriam intermediados por eles nas negociatas. Os vereadores se limitaram a dizer que as listas eram falsas e a questionar a sua procedência. Caso comparem as listas divulgadas por ISTOÉ com a agenda pessoal do prefeito de 1997, os membros da Comissão Processante irão encontrar outras coincidências dignas de investigação.

Na agenda está, segundo Nicéa, a comprovação de que Brasil Vita teria recebido R$ 75 mil. Na lista divulgada em abril, o nome do vereador é citado como um dos favorecidos por uma mesada de R$ 75 mil. Na agenda de Pitta estão relacionados vários vereadores, além de Vita, e a propina que teriam recebido: Armando Mellão (PMDB), R$ 110 mil; Antônio Goulart (PMDB), R$ 60 mil; Hana Garib (eleito deputado estadual e depois cassado), R$ 110 mil; José Índio (atualmente deputado federal), R$ 90 mil; Mário Dias (PPB), R$ 60 mil; Maeli Verginiano (cassada), R$ 60 mil; Cosme Lopes (PPB), R$ 70 mil; Nelo Rodolfo (hoje deputado federal), R$ 130 mil; e Salim Curiati (PPB), R$ 30 mil. Maeli, Mário Dias, Goulart e Mellão também estão presentes em uma das listas divulgadas por ISTOÉ.

Na tarde de quinta-feira 18, outro depoimento serviu para piorar a situação de Pitta. O advogado Ryad Gattaz Cury, testemunha de acusação indicada pela Ordem dos Advogados do Brasil, levou aos vereadores uma carta assinada pela procuradora-geral do município, Eliane Salim, destinada a um contribuinte. Na carta, datada de 3 de janeiro último, a procuradora informa que a prefeitura não dispõe de recursos para pagar o precatório devido à contribuinte. Segundo o advogado, aquele precatório estava na lista dos compromissos a serem quitados com os recursos provenientes da venda de títulos públicos. “Isso prova que houve desvio do dinheiro destinado aos precatórios”, afirma o advogado. Os defensores de Pitta não se manifestaram. “Foi o documento mais importante que surgiu em todo esse processo”, sentenciou o petista Devanir Ribeiro, membro da Comissão Processante. Resta saber se a maioria governista irá permitir que as investigações sejam aprofundadas.

"Sinto vergonha de meu pai"

Na quarta-feira 17, enquanto aguardava o horário de seu depoimento na Câmara Municipal, Victor Pitta, filho do prefeito paulistano, concedeu uma entrevista exclusiva à jornalista Angélica Santa Cruz, do site NO. Ele revelou que sente vergonha do pai, disse que na próxima eleição está em dúvida se votará em Marta Suplicy (PT) ou Luiza Erundina (PSB) e se definiu como um “rapaz normal de classe média, que fuma maconha e sai com garotas de programa”. A seguir alguns trechos da entrevista:
Você tem raiva de seu pai?

Victor Pitta – Na verdade, sinto vergonha pelas coisas que ele me fez ver. E desilusão, porque ele me decepcionou como político mesmo…Vi meu pai falar que ia fazer uma universidade na periferia e botei fé nisso… Hoje, acho que ele se submeteu a ser o pior prefeito que esta cidade já teve.
Qual a melhor lembrança que você tem de seu pai?
Victor – Acho que foi quando ele me levou ao Rock’n’Rio, nos anos 80. Eu era moleque e a gente foi junto nos shows do AC/DC, Iron Maiden… A gente riu e se divertiu muito.
E a pior lembrança?
Victor – É a do dia em que ele bateu na minha mãe.
O prefeito agrediu dona Nicéa?
Victor – Foi quando ele ainda trabalhava na Eucatex. Não quero entrar em detalhes, por minha mãe. Mas eu e minha irmã vimos tudo.
Aos 25 anos, você não trabalha, não estuda e teve incursões em delegacias. Seu currículo ameaça o teor de suas denúncias?
Victor – Gosto de sair com garotas de programa, gosto de fumar maconha de vez em quando e não vejo crime nisso.
Em quem você irá votar?
Victor – Estou indeciso entre Marta Suplicy e Luiza Erundina. Adoro o PT, acho um partido legal, mas não sei se os petistas dariam tanto apoio a Marta. A Erundina, apesar de ter falado coisas contra meu pai, foi uma boa prefeita. Fez muito pela periferia, o que meu pai prometeu e não fez.