O que é vanguarda? É aquilo que choca? Que surpreende? Por tentar responder a essas perguntas, a turma de alunos do terceiro ano do ensino médio da Escola Vera Cruz, em São Paulo, virou notícia na semana passada. Durante o primeiro bimestre, os alunos estudaram na disciplina de Língua Portuguesa e Literatura os movimentos de vanguarda na arte do início do século que ambientaram importantes correntes literárias. Foram instruídos a apresentar performances de encerramento do trabalho, a partir do conteúdo discutido em sala de aula. Toda a turma foi dividida em grupos de acordo com vanguardas (dadaísmo, fauvismo, surrealismo, impressionismo, modernismo, cubismo, futurismo, expressionismo e antropofagia – leia quadro). O combinado era que a professora Glória Cordovan, que havia sugerido o trabalho, não saberia antes o conteúdo final das apresentações. Somente a coordenadora pedagógica da escola, Maria Lúcia Ruiz, e os alunos de cada projeto estariam a par do que iria acontecer. Até aí, normal. Nada que justificasse as dimensões dadas ao assunto pela imprensa. O jornal Folha de S. Paulo deu uma notinha na coluna de Monica Bergamo, seguida de uma matéria de meia página. A polêmica explodiu e mobilizou as rádios Bandeirantes e CBN. O jornal Agora São Paulo noticiou o assunto com o título “Alunas ficam nuas em colégio”. O Fantástico, da Rede Globo, procurou os alunos em busca de informações sobre o episódio.

Na origem do problema, algumas apresentações temperadas com topless e beijo na boca. Atos rigorosamente vanguardistas apoiados numa proposta pedagógica, como fica claro no próprio discurso dos alunos.“Eu me vesti de Matisse, principal representante do fauvismo, e encenei a pintura de um quadro sério que tinha como modelos meninas vestidas”, conta Felipe Ribenboim, 17 anos. “Só que enquanto ‘Matisse’ pintava foi surpreendido pela beleza de duas alunas seminuas, muito mais ‘fauvistas’ do que o quadro anterior. Isso fez com que ‘ele’ desistisse das modelos certinhas e pintasse, literalmente, o próprio corpo das meninas”, completa ele.

Foto: Hélcio Nagamine
Fauvismo Felipe interpretou Matisse e Jaqueline fez topless

Algumas críticas parecem ignorar não apenas o conteúdo pedagógico da proposta mas o fato de que os pais acompanharam toda a gestação do projeto. A coordenadora Maria Lúcia afirma que os pais sabiam como seriam as performances. “Nenhum deles discordou de nada”, garante. A aluna Jaqueline Pen, 17 anos, uma das meninas que mostraram os seios durante o trabalho, conta que teve, inclusive, o apoio da mãe. Jaqueline, ao contrário do que pode parecer, é uma menina muito recatada e discreta, mas foi a primeira a topar a ousadia. “Lembrei de um filme do Buñuel em que ele trabalhava com nudismo para surpreender a sociedade”, lembra a aluna. A mãe de Jaqueline, Jeane Pen, tentou sugerir um maiô cor da pele em vez de seios à mostra, mas não ficou chateada com a conclusão do projeto. “Escolhi o Vera Cruz como escola para minhas filhas porque simpatizo com a filosofia deles. Sei que nenhum gesto dos alunos foi gratuito e acho que essa turma do terceiro ano de 2000 entrou para a história de um jeito positivo”, diz Jeane.

O psicólogo social Odair Furtado partilha da mesma opinião de Jeane e afirma que, além de coerente, a proposta “vaguardista” do colégio é sensata e ao mesmo tempo arrojada. “O Vera Cruz tem um trabalho diferenciado em relação à maioria das escolas e quem escolhe essa forma de ensino deve estar preparado para esse tipo de performance”, opina o especialista. “Além de que nada mais natural do que ser polêmico em um trabalho sobre vanguarda. Se os alunos provocaram tanto furor é porque entenderam muito bem a lição”, completa Furtado. Nem todos os educadores pensam dessa forma. “Não sei ao certo o que houve, mas não acho correto uma aluna mostrar os seios dentro do espaço da escola”, comenta Lucy Wendel, professora de Química do colégio Santa Cruz e ex-coordenadora de terceiros anos. Maria Antonieta Vilella, professora de Artes do Nossa Senhora das Graças, o Gracinha, outro famoso colégio de São Paulo, concorda com Lucy. “Talvez um happening sobre as escolas de vanguardas em um ateliê de arte pudesse abarcar o nu. Mas na escola, esse tipo de manifestação não faz muito sentido. Há outras formas igualmente interessantes de discutir e ensinar modernismo”, completa Maria Antonieta.

Foto: André Sarmento
Dadaísmo Marcela e Julia apoiaram o beijo que Bel (à esq) deu na professora

Os alunos do Vera Cruz, no entanto, parecem discordar dessa linha de raciocínio. Eles atribuem o total domínio do conteúdo à forma como as performances foram apresentadas. “Todos os trabalhos saíram tão criativos que acho difícil algum de nós esquecer qualquer vanguarda”, comenta a estudante Bel Cezar, 17 anos. Bel representou a Sininho das histórias de Peter Pan no trabalho sobre dadaísmo e dá um show de sabedoria quando explica por que beijou a boca da professora de Português, ainda que sem autorização da coordenadora e da própria professora. “A Sininho remete à infância, conceito presente no dadaísmo, e vem da Terra do Nunca onde a lei das crianças é a que vale, o que também remonta ao espírito anárquico da corrente literária. O beijo na boca, por sua vez, simboliza a irreverência dadaísta”, diz.

Irreverência é também a palavra que mais bem define o grupo que trabalhou com o expressionismo. “A gente ficou o tempo todo com uma tarja na boca para mostrar a castração da liberdade de expressão. Depois, colocamos fogo em um globo terrestre, nos livramos das tarjas e demos um grito, como o do quadro expressionista de Munch”, conta o aluno Felipe Gil, 17 anos. “Além disso penduramos línguas de boi nas escadas do colégio para fortalecer a idéia de angústia do expressionismo”, completa o colega de Felipe, Juliano Mendonça. Já o grupo que retratou o modernismo em Portugal optou por uma performance mais chocante. Eles ofereciam nuggets de frango aos colegas e depois trituravam uma galinha morta em um moedor de cana. “Só não esmigalhamos a galinha porque houve uma queda de energia elétrica e o triturador não funcionou. Foi pena também não podermos passar o filme Tempos modernos de Chaplin, que representa bem a idéia da máquina engolindo as pessoas no auge da revolução industrial”, conta o aluno Flávio de Oliveira, 17 anos.

Postura – Apesar de toda a polêmica gerada em torno dos trabalhos dos alunos, o Vera Cruz não parece inclinado a mudar de postura em relação às performances dos próximos anos. “Espero que a sociedade não seja tão conservadora a ponto de tolher um projeto belo como esse. No que depender da gente e da vontade dos alunos, daremos continuidade à proposta de ensino das vanguardas”, comenta a diretora pedagógica do colegial, Lucilia Bechara. Ela trabalha no Vera Cruz há, pelo menos, 37 anos, quando a escola foi fundada nos moldes do que se chama “pedagogia construtivista”, que prega o aprendizado do aluno por meio da construção do conhecimento e não da imposição de regras ortodoxas.

Essa forma de ensinar e pensar a educação é provavelmente o que faz do Vera Cruz uma escola repleta de alunos com pais famosos como o diretor de tevê Cao Hamburguer, o deputado Emerson Kapaz e o comunicador Yacoff Sarkovas. Talvez o pensamento das estudantes Marcela Capelli e Julia Botelho, as companheiras da “Sininho”, traduza a mensagem que o Vera Cruz tenta passar aos alunos: “Se leio, decoro. Se ouço, entendo. Mas se faço, aprendo”, dizem as meninas, em coro.

As escolas e a escola
Como os estudantes retratam os movimentos artísticos
Vanguarda
História
Performance dos alunos
Impressionismo

Os artistas que mais representam essa escola que nasceu em1874 são Monet e Renoir. Contra a maneira figurativa e perfeccionista do Renascimento, eles retratavam "uma impressão" da realidade com jogo de luz, por exemplo Um jogo de luz e sombra simbolizava a importância das cores e da luz nesse trabalho. Os alunos se movimentavam vagarosamente sob confetes que remetiam ao pontilismo, escola inserida no impressionismo
Fauvismo

Nasceu em 1905 com o pintor Matisse. O nome Fauvismo vem de um crítico de arte da época que, ao assistir a uma exposição de Matisse, o chamou "fauve"(do francês, fera). Isso porque o artista usava cores fortes e quentes para favorecer a perspectiva. Seus quadros retratam rostos e naturezas idílicas Os alunos lançavam ao ar, nas salas de aula, bolinhas coloridas de plástico. Um deles fingia ser Matisse e pintava uma cena impressionista. Os modelos eram duas meninas vestidas. Três alunas enroladas num lençol saíam de dentro do vestiário e introduzíam-se "no quadro". Duas dela soltavam o lençol e descobriam o busto. "Matisse", deslumbrado, alterava o quadro anterior e pintava os corpos das moças
Expressionismo


Nasceu na Alemanha no final do século XIX. Seus maiores representantes foram Van Gog e Edward Munch. Esse último marcou o expressionismo com o quadro "O Grito", de 1893. Essa escola trabalha com cores fortes e retrata a noite e a miséria. Consiste, grosso modo, na deformação da pintura. Tudo isso para "expressar" uma espécie de revolta e de grito final contra a forma autoritária de se fazer arte
Vestidos de preto e com tarjas na boca, alunos entravam na sala de aula e convidavam colegas a se dirigirem ao pátio. Nas escadas, línguas de boi dependuradas em batentes representavam a castração da expressão. No pátio, alunos tingiam de sangue e queimavam um globo terrestre. O mundo pegava fogo enquanto o grupo de alunos arrancava a tarja da boca e dava um grito, evocando o quadro de Munch
Cubismo

Os grandes nomes dessa vanguarda que nasceu em 1906 foram Picasso e Braque. Eles visavam romper com a maneira figurativa de retratar a arte. "Geometrizaram" a pintura. Picasso descrevia seus quadros como uma somatória de olhares sobre um mesmo objeto, visto de vários ângulos Usando cubos e caixas pretas na cabeça, os alunos mostravam a geometrização característica do cubismo. Um jogo de espelhos estilhaçados simbolizava a visão multifacetada sobre um mesmo objeto, conforme o pensamento de Picasso
Futurismo

Surgiu na Itália em 1909 com o Manifesto Futurista. Os artistas viviam sob influência da revolução industrial. Pregavam a retratação do tecnicismo dos "novos tempos". Pintavam e escreviam sobre máquinas e automóveis. Um dos maiores símbolos foi o poeta Marinett. Seus poemas demonstravam uma forte crença no poder transformador da máquina No pátio, um aluno trajando capa militar, e uma jovem de preto, cortavam os cabelos um do outro para representar a perda da potência do homem e a vitória da máquina. Do alto do edifício da escola, os alunos arremessavam no centro da cena livros e objetos de sala de aula. Subitamente um trator invadia a cena e carregava os objetos em chamas para fora da escola
Dadaísmo

Essa corrente nasceu em 1917 e queria mostrar que a Primeira Guerra derrotou todas as possibilidades da criação. Marcel Duchamp foi o seu principal expoente, com seus trabalhos e situações inéditos. Foi um resgate do lado irracional e infantil das pessoas Um casal vestido de Sininho e Peter Pan entrava nas salas de aula simbolizando a infância. Sininho surpreendia a professora com um beijo na boca. Nas escadas, bonecas Barbies e pedaços de carne simbolizavam uma crítica à ditadura dos padrões de beleza
Antropofagia

Nasceu em 1928, com o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. Era uma tentativa de digerir algumas qualidades artísticas estrangeiras que, em contato com a nossa cultura, poderiam desenvolver uma nova forma de fazer arte. O quadro Antropofagia de Tarsila do Amaral ilustra essa corrente que evoca outras vanguardas temperadas com pitadas de cultura brasileira Alunas fantasiadas de caipiras ficavam na recepção e conduziam o público a um gigantesco tubo inflado de ar, que simulava o intestino em movimento. As caipiras selecionavam quem poderia entrar e participar do banquete antropofágico, representando a intenção de Oswald de Andrade, no manifesto original