“Oh, diamantes, diamantes, diamantes. Desde a guerra, todo mundo está ficando louco por causa dos diamantes. Você não pode imaginar a quantidade de propina que isso movimenta”
(Yusef, personagem de The heart of the matter, de Graham Greene, romance ambientado em Serra Leoa)

Em Freetown, capital de Serra Leoa, o trabalho dos cirurgiões costuma ser mais estressante do que o da Força de Paz da ONU (Unamsil), que na semana passada teve quase 500 de seus soldados sequestrados por rebeldes da Frente Revolucionária Unida (FRU) e estava prestes a entrar em combate com o grupo. Os médicos têm que se desdobrar para amputar mãos, braços ou pernas de um número crescente de homens, mulheres e até crianças cujos membros foram parcialmente decepados a golpes de machado desfechados pelos “guerrilheiros” da FRU. É uma organização de rapina, chefiada por um ex-cabo do Exército e ex-cameraman, Foday Sankoh, que vive do contrabando de diamantes e fez da mutilação, sequestro e estupro de civis inocentes sua marca registrada. Num dos países mais miseráveis do mundo, um dos poucos cuja distribuição de renda é pior do que a do Brasil (leia gráfico), o contrabando de diamantes é o combustível de uma guerra civil que desde 1992 já matou milhares de pessoas e obrigou meio milhão de leoneses a abandonar o país.

Com o fim da Guerra Fria, o comércio ilegal de diamantes se tornou, em meados dos anos 90, uma grande fonte de recursos para Exércitos e guerrilhas numa área de guerras endêmicas da África ocidental, em países como Congo, Angola, Libéria e Serra Leoa. “Ninguém pode guerrear sem dinheiro, e diamantes aqui representam dinheiro”, resume o comprador Willy Kingombe Idi. De fato, naquela parte da África, o contrabando de diamantes vem exercendo um papel que em outras áreas de conflitos, como na América Latina e Ásia, costuma ser dominado pelo narcotráfico. Pesquisadores independentes, como a jornalista britânica Christine Gordon, acreditam que esse tráfico na África ocidental responde por 10% e 15% do total do comércio mundial de diamantes, que somente no ano passado movimentou nada menos que US$ 5 bilhões.

AP

Mutilação nem as crianças ficam livres da sanha assassina dos terroristas

A FRU controla hoje a maior parte das minas de diamantes localizadas na região Leste de Serra Leoa, obtendo lucros de milhões de dólares com a exportação ilegal, principalmente para a vizinha Libéria, liderada pelo ex-rebelde e atual presidente, Charles Taylor. Aliás, o crescimento da FRU coincide com a ascensão de Taylor na Libéria, eleito em 1997. Ele e Sankoh são velhos amigos: ambos receberam treinamento militar na Líbia, iniciaram rebeliões contra os governos de seus países no final dos anos 80 e se ajudaram militarmente. O governo liberiano nega o contrabando, mas, de acordo com dados do Higher Diamond Council, em Antuérpia (Bélgica), o valor das exportações de diamantes brutos de Serra Leoa caiu de US$ 66 milhões para US$ 31 milhões em 1999, ao mesmo tempo que as exportações da Libéria – que não produz diamantes – pularam de US$ 268 milhões para US$ 298 milhões. Estudos recentes indicam que Serra Leoa está perdendo anualmente entre US$ 200 milhões e US$ 300 milhões com o tráfico.

Segundo diplomatas e funcionários da ONU, os comandantes da FRU embolsam uma porcentagem das vendas de diamantes, mas grande parte do dinheiro é usada na compra de armas modernas. A organização Human Rights Watcht afirma que somente em março do ano passado 68 toneladas de armas provenientes da Ucrânia e de Burkina Faso foram entregues aos militantes da FRU. Mas o dinheiro dos diamantes também é utilizado para financiar a campanha eleitoral do líder Foday Sankoh – a eleição presidencial de Serra Leoa está prevista para o próximo ano. A principal razão para o recente recrudescimento do conflito foi a tentativa que a Força de Paz da ONU fez para retomar as áreas de produção de diamantes, conforme previa o acordo de paz assinado entre o governo e os rebeldes em julho do ano passado.

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Aos 63 anos, o roliço Foday Sankoh – conhecido como “Papa” – comanda um exército que tem entre 10 mil e 15 mil homens, a maioria recrutada através do sequestro de jovens camponeses, muitos dos quais ainda são adolescentes. A organização foi formada em 1991 por ele e por um grupo de seguidores treinados na Líbia oriundos do movimento estudantil com o objetivo de lutar contra a corrupção institucionalizada do regime de partido único. Hoje, a FRU ainda abriga um minoritário grupo de idealistas pan-africanos, mas a maioria dos militantes, jovens empobrecidos, vê o movimento como simples meio de ganhar a vida. Apesar do discurso “esquerdista” de seu líder (“Os agentes do colonialismo chamados políticos fizeram nosso povo empobrecer. É por isso que nós estamos lutando”), a organização adota métodos da mais pura bandidagem, aterrorizando a população com mutilações, estupros, sequestros e assassinatos. Métodos que, diga-se de passagem, foram ensinados aos africanos no século passado pelo rei da Bélgica Leopoldo II no Congo Belga. Condenado à morte por traição em 1997, o carniceiro Sankoh não apenas foi anistiado com o acordo de paz de 1999 como ganhou o cargo de vice-presidente, e a FRU várias pastas no Ministério. Na segunda-feira 8, a guarda pessoal de Sankoh atacou a multidão que protestava em frente à sua casa em Freetown e matou oito manifestantes. O líder guerrilheiro não foi visto desde então. Seu desaparecimento aumentou os temores de que o infeliz país mergulhe mais uma vez num interminável banho de sangue.

Do sonho da liberdade à realidade da servidão
1896 – Depois de servir como base para escravos libertos, Serra Leoa se transforma num protetorado britânico

1961 – Conquista da independência. Milton Margai, do Partido do Povo de Serra Leoa, é o chefe de governo

1967 – O premiê Siaka Stevens, do Congresso de Todo o Povo, é derrubado por um golpe, mas é reconduzido ao poder um ano depois

1978 – Stevens introduz o regime de partido único

1985 – Joseph Momoh, aliado de Stevens, é eleito presidente num governo marcado pela corrupção institucionalizada e crise econômica

1992 – Momoh é deposto por um golpe liderado pelo capitão Valentine Strasser meses antes de um plebiscito sobre o pluripartidarismo

1996/97 – Ahmed Tejan Kabbah é eleito presidente, mas é deposto por um golpe do general Paul Koroma, aliado ao grupo guerrilheiro FRU

1998 – Força militar liderada pela Nigéria intervém em Serra Leoa. Kabbah retorna e reassume
1999 – Rebeldes da FRU invadem Freetown, mas são repelidos. Um acordo de paz garante anistia aos rebeldes e divisão de poder. Forças de paz da ONU chegam a Serra Leoa

2000 – A guerrilha impede a ONU de se deslocar na região das minas de diamante. Quase 500 membros da Unamsil são sequestrados pela FRU



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