Entre as bizarras notícias que circularam nas últimas semanas (e foram tantas), poucas me impressionaram tanto como a viagem suicida do padre voador, pelo que a história tem de tragicômica e simbólica. Desde os tempos de Ícaro até os dias atuais, de esportes perigosamente radicais, o homem sempre cultivou a louca obsessão de planar nos ares, para estar mais perto de Deus, por causas científicas ou simplesmente pelo êxtase de transpor os limites humanos.

Diz sábio ditado popular que "Deus não dá asa a cobra". A crer em adágios, Deus é mesmo pleno de sabedoria, afinal não me pareceria razoável um mundo povoado de serpentes aladas. É certo também que Deus não deu asas ao homem, mas deu-lhe coisa maior, ao dotá-lo de poderosa imaginação, o que o levou a vôos sem fim. Mas, ao que parece, os "vôos da imaginação" que o homem realizou, seja no exercício da arte, da ciência, do esporte, da religião ou apenas de sua demasiadamente humana loucura, nunca lhe bastaram. Era preciso flutuar sobre os demais mortais, ir o mais longe que fosse capaz, se possível tocar o sol, cruzar a Via Láctea, ir a outros planetas nunca dantes explorados, como se voar pudesse reabilitar a nossa espécie do seu triste destino, de sua finitude, sua limitação física até.

Dessa fantasia de voar surgiram coisas úteis, essenciais e fantásticas, e outras nem tanto. Pelas mãos e mentes de Santos Dumont e dos irmãos Wright veio a incrível invenção do avião; pelas mãos de outro padre, o pioneiro jesuíta Bartolomeu de Gusmão, criou-se o balão, e muito mais se fez.

O fato de um padre lançar-se às alturas sem maiores cautelas pode ser revelador de uma convicção que só é dada a crentes muito convictos

No caso deste padre aventureiro, causam impressão alguns fatos, como o noticiado despreparo para a empreitada e a sua crença aparentemente inabalável no êxito de seu vôo. Padres são homens devotados à liturgia da religião, às causas da fé, têm uma presumida proximidade com o céu, não o céu físico, astronômico, mas o céu metafísico, espiritual. O fato de um padre lançar-se às alturas sem maiores cautelas pode ser revelador de uma convicção que só é dada a crentes muito convictos. Para voar, também há uma liturgia e, neste sacramento, segundo a voz dos especialistas, o padre teria pecado.

Dizem que a viagem do padre tinha o objetivo de arrecadar fundos para a construção de um alojamento para caminhoneiros. Outra versão diz que ele buscava prêmios, marcas e mesmo celebridade, o que torna o mítico "subir aos céus" mundano, menos nobre. Nada que cause tanto espanto, afinal já nos acostumamos, nestes tempos espetaculosos, a padres aeróbicos, pastores pop stars e gurus marqueteiros. Nada de errado, pois, com um religioso cuja elevação necessite de balões de gás e GPS.

Pensando bem, o mito de voar desde sempre esteve relacionado à fé. As Escrituras narram, embora não expliquem como, que Cristo teria "subido aos céus" depois de ser crucificado e morto e de ter ressuscitado ao terceiro dia. Entre todas as formas possíveis de ascensão, porém, creio ser pouco razoável imaginar o Filho de Deus sendo alçado por mil balões de gás hélio.