No circuito das artes corre a lenda de que a pintora, escultora e gravurista japonesa Tomie Ohtake quase não fala. Não é bem assim. Aos 87 anos, os últimos 64 vividos na cidade de São Paulo, Tomie apenas enfrenta algumas barreiras com o idioma português. Embora não supere essas dificuldades, consegue contorná-las facilmente. Assim, não falta a acontecimentos culturais importantes, mas evita espetáculos centrados na linguagem verbal. “Prefiro música, dança”, comenta. Em casa, só lê jornal escrito em japonês, em especial o São Paulo Shimbun. “É incrível que entregam na porta, e não tem outros japoneses no bairro”, diz ela no seu português estrangeirado. Ao explicar sua arte, Tomie é igualmente concisa. “Tudo vem de dentro.” Empolga-se, porém, ao falar da cidade na qual vive desde 1936. “Falam da violência, do trânsito, mas eu amo São Paulo”, declara. “Sempre tem muito movimento, tem construção em todo lugar.”

Se a familiaridade com o português não é total, não há dúvida de que a melhor expressão de Tomie é sua arte. No mundo das cores e das formas, ela é inigualável. E agora protagoniza uma iniciativa sem precedentes no Brasil. Na esteira de um investimento de R$ 10 milhões, está sendo construído no bairro de Pinheiros, em São Paulo, o Instituto Cultural Tomie Ohtake. Com inauguração prevista para novembro, o complexo se espalhará por cerca de nove mil metros quadrados, em seis andares, com espaços para exposições e cursos. Parte do acervo de Tomie ficará em um salão de 400 metros quadrados. Para as artes cênicas foram projetados dois teatros, um deles com capacidade para 723 espectadores.

O empreendimento também reflete a integração entre a artista e seus dois filhos, os arquitetos Ruy e Ricardo, de 62 e 58 anos, respectivamente. Ruy, um dos mais conceituados arquitetos do País, é o responsável pelo projeto. “O instituto é a consolidação de nossa confiança na identidade cultural brasileira, na qual estamos engajadíssimos”, afirma ele. Para o arquiteto, a iniciativa é também consequência dos almoços de domingo em família, sempre permeados por discussões sobre arte e cultura.

Amigo de Ruy desde os anos 50, quando estudaram juntos, o empresário Victor Siaulys é o principal responsável pela criação do instituto. “Queríamos oferecer um presente à cidade de São Paulo e, ao mesmo tempo, homenagear a família Ohtake”, diz Siaulys. Ele é um dos donos do Laboratório Aché, que está bancando a construção e cedeu o espaço aos Ohtake em regime de comodato, por 30 anos.

O encarregado de transformar o instituto em um autêntico pólo cultural é o caçula de Tomie, o designer gráfico Ricardo, ex-secretário de Cultura do Estado de São Paulo, que recentemente esteve em Tóquio acertando uma mostra do estilista Issey Miyake. Envolvida com o trabalho em seu ateliê, Tomie não parece nem um pouco preocupada com os detalhes do empreendimento. “Eu não planejo nada, só vou obedecendo…”, brinca. “A idéia de criar espaços para cursos é da Tomie”, comenta Ricardo, que vive com a mãe numa bela casa de concreto aparente e vidro no bairro do Brooklin, projetada por Ruy no início dos anos 70.

Tomie se radicou no País por acaso. Vinda de Kyoto, ela chegou com o irmão Teinosuke, aos 23 anos, para visitar outro irmão, Masutaro, que vivia em São Paulo. Com o recrudescimento da guerra do Japão com a China, Tomie não teve como voltar. Pouco depois, se casou com o engenheiro agronômo japonês Ishio Ohtake. Durante 15 anos, Tomie dedicou-se apenas à família. Só começou a pintar em 1952, mas logo sua arte foi tomando conta do sobrado da família na Mooca, tradicional bairro de imigrantes, principalmente italianos.

No começo, a artista plástica reproduzia em telas de pequeno formato as casas da vizinhança. Em pouco mais de dois anos, passou do figurativo ao abstrato. À época, não faltaram elogios à maestria com que lidava com a luz, mas a primeira pessoa a valorizar profissionalmente seu trabalho foi o médico Osório César, casado com a pintora Tarsila do Amaral. Em 1957, Tomie fez sua primeira exposição individual, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo. Daí em diante, não parou mais. Hoje, uma tela de 1m x 1m, de tamanho modesto no conjunto da sua obra, vale US$ 24 mil.

O que mais emociona nela é a sua vitalidade, a disposição para realizar. Ultimamente, porém, Tomie Ohtake começou a fazer referências à morte. “Sinto que tenho alguma coisa … coração, pulmão, pressão, não sei…”, divaga a artista, que completará 88 anos em novembro. “Eu gosto de trabalhar. Naturalmente, quero trabalhar até morrer. Só não quero ficar doente nem um pouquinho”, diz. “Se eu tiver de morrer, que seja de repente…”