Quatro anos depois do massacre de trabalhadores rurais sem-terra durante um protesto que fechou uma das principais rodovias do sul do Pará, as famílias dos sobreviventes do conflito vivem o drama dos mutilados de Eldorado dos Carajás. São 67 homens e mulheres que escaparam da morte, mas carregam no corpo as sequelas deixadas pelas balas de fuzis e metralhadoras da Polícia Militar, encarregada pelo governador tucano Almir Gabriel de desobstruir a estrada a qualquer custo. O resultado da ação daquele 17 de abril de 1996 foi o assassinato de 19 pessoas. Mas o número total de vítimas subiu para 21, com a morte de João Batista Penha, na segunda-feira 8, por problemas cardíacos agravados pelos ferimentos à bala. Há cerca de dois anos, Francisco Divino da Silva não resistiu à hemorragia cerebral devida ao tiro que recebeu no dia do confronto. Depois do massacre, o governo federal assentou 690 famílias na antiga Fazenda Macaxeira, zona rural de Carajás, alvo dos protestos dos sem-terra. Cada família recebeu um lote de 30 hectares. Mas os mutilados não conseguem cultivar a terra. As marcas deixadas pelo massacre impedem o trabalho em pé por muitas horas sob o sol forte. A maioria toma medicamentos diariamente e, para tirar a sobrevivência da pequena roça, conta com a ajuda de amigos e parentes.

Os mutilados e as viúvas recebem R$ 300 de ajuda mensal do governo estadual. As indenizações para as vítimas e familiares ainda não foram definidas pela Justiça. ISTOÉ visitou o assentamento, que leva o nome de 17 de Abril e constatou o drama dos sobreviventes: eles enfrentam dificuldades de transportes, não contam com energia elétrica, não têm condições físicas para o plantio e vivem isolados por causa das péssimas condições das estradas. Em muitos lotes somente é possível chegar a cavalo ou com um trator. Além das indenizações, o assentados de Carajás aguardam para o mês de junho o segundo julgamento dos policiais que participaram no massacre. O primeiro foi anulado por falhas no processo. Sobreviventes de Carajás, como Domingos Reis da Conceição, defendem a transferência do júri para a Justiça Federal, em Brasília, a fim de garantir a isenção do julgamento e impedir as pressões para livrar a PM e o governo do Estado da responsabilidade pela ação. A tragédia pôs o Brasil no noticiário internacional como um dos países com os maiores índices de violência no campo.

Foto: Leopoldo Silva

DOR E INCHAÇO Germano Pereira Costa, 49 anos, não consegue sobreviver do que planta em seu lote. A perna atingida por tiro de fuzil logo abaixo do joelho dói muito e incha no final de cada jornada de trabalho

Domingos, 24 anos, é um rapaz raquítico e de pequena estatura que ganhou o apelido de Garoto pela sua aparência de menino. Ele levou mais de dez tiros durante o conflito com a PM. As pernas e o tórax foram os locais mais atingidos. Graças à ajuda do irmão Cícero, consegue plantar arroz, feijão, milho, amendoim, batata-doce, melancia e abóbora no seu lote. Ele é um dos líderes dos sem-terra do Pará e estava na linha de frente do protesto, quando a estrada foi bloqueada na altura da chamada Curva do S. Mesmo mancando e sentindo dores, há três semanas esteve na passeata dos sem-terra em Belém pelas indenizações para as vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás. Garoto anda com dificuldade. Os ferimentos antigos foram graves e para voltar a ter movimento nas pernas, sofreu várias cirurgias. A perna direita foi encurtada em 3 centímetros. A bacia, o tórax e os ombros sofreram deformações. Garoto precisa de botas ortopédicas, promessa que a Secretaria de Saúde do Estado do Pará fez e não cumpriu.

Vergonha – Antes do conflito, aos 20 anos, Domingos era como todo jovem de sua idade. Jogava futebol, dançava forró nas festas e ensaiava golpes de capoeira. “Hoje minha vida não é mais a mesma. Tenho vergonha porque manco e não posso trabalhar como quero”, lamenta. “Toda noite sonho com o massacre. Quando passo perto de um PM fico nervoso, chego a tremer. Não é medo. É a lembrança de quem viu a cara da morte e escapou por milagre.” O nascimento de Marcos Vinícius, seu primeiro filho, trouxe esperanças para Garoto. “Quero que ele tenha boa educação, seja um bom agricultor, talvez um engenheiro agrônomo, e, principalmente, que não perca a saúde lutando pela terra e pela reforma agrária.”

 

Medo da morte – José Carlos Agarito Moreira, também com 24 anos, é amigo de Garoto. Ele toma dois tipos de remédio por dia. Um para dor, outro para conseguir dormir. O tiro que acertou Moreira no dia do massacre atingiu o olho direito e o deixou cego. Até hoje a bala está alojada no crânio. Ele já fez várias cirurgias e carrega uma cicatriz de 15 centímetros na testa. Quando passa algumas horas trabalhando na roça, a cabeça dói. “Parece que vou explodir. Não consigo produzir. Quem cuida do arroz, do feijão e das outras culturas que plantamos aqui para ter o que comer é meu pai”, afirma, exibindo uma radiografia, pela qual se vê a bala alojada na cabeça. Há três anos, implantou uma prótese ocular. “Tenho medo de morrer a qualquer momento por causa dessa bala que parece andar pela minha cabeça”, conta. José Carlos não conseguiu terminar o curso primário e sua habilidade está no trato com a terra. “Mas nem isso posso fazer mais.

Ao lado da casa de José Carlos na vila 17 de Abril vive o casal Germano Pereira Costa e Lourença Ferreira dos Santos. Até 1978, ganhavam dois salários mínimos trabalhando em fazendas do Maranhão, quando foram atraídos pela febre do ouro no sul do Pará. Pobres e desempregados perambulavam pelas ruas de Marabá até que se engajaram no Movimento dos Sem-Terra (MST). Germano estava no conflito e recebeu um tiro de fuzil logo abaixo do joelho esquerdo, estraçalhando parte da canela. Hoje manca, sente fortes dores na perna, que incha com poucas horas de trabalho no campo.

 

 

Foto: Leopoldo Silva

Última vítima
João Batista Pereira Penha morreu na segunda-feira 8, duas semanas depois de ser entrevistado por ISTOÉ, em consequência de problemas cardíacos

Germano passou 39 dias no hospital e precisou de um enxerto para recompor a perna. Para ter o que comer, a roça de arroz, feijão, milho, banana e mandioca é tocada exclusivamente pela mulher. Os filhos menores ajudam pouco, mas são pequenos e não dão conta do serviço. Quando falta dinheiro, Lourença recorre ao irmão. “O que fizeram foi uma grande covardia. Tomei tiro, muito chute e pancadas na cabeça até desmaiar”, lembra Germano. Traumatizado, hoje tem medo de multidão. Mas afirma que faria tudo outra vez. “Foi por causa dessa luta que consegui uma casa e um pedaço de terra.”

Desfecho trágico – O Maranhão, um dos Estados mais pobres do País, também fez migrar o casal sem-terra Antônio Alves da Cruz e Maria Senhora de Oliveira Cruz. O sonho estava no sul do Pará, onde há muita terra para produzir. Mas o casal não imaginava o desfecho da aventura. Antônio e Maria Senhora levaram os três filhos mais velhos. Depois de sete anos procurando um pedaço de chão, acharam um pesadelo. Sem terra e sem emprego, não sabiam o que fazer para alimentar a família que passou de três para sete filhos. Aos 58 anos, Antônio resolveu entrar no MST, onde encontrou muitos que tinham o mesmo sonho: terra, trabalho e pão. Enquanto Maria Senhora cuidava dos filhos e frequentava a Igreja Evangélica, Antônio participava das ocupações e dos protestos. Aquele 17 de abril era para ter sido apenas mais uma manifestação. Antônio ajudou a bloquear a estrada entre Carajás e Marabá, na Curva do S. Dona Maria Senhora, hoje com 61 anos, soube do confronto armado entre a PM e os sem-terra e esperou o noticiário de tevê para saber dos acontecimentos. Na lista dos 19 mortos, estava Antônio. Em estado de choque, Maria Senhora e seus filhos correram para a Curva do S, mas só encontraram o corpo no dia seguinte já no necrotério de Marabá. Dois dias depois, o massacre fez outra vítima na mesma família. Maria Senhora sofreu um derrame cerebral.

Foto: Leopoldo Silva

A dor das viúvas
Ainda sem direito a indenização, as mulheres que perderam seus maridos trabalham nos lotes que receberam do governo

Sem reza – Levada às pressas para Belém, ficou em coma três meses. Religiosa, não teve chance de orar pelo marido e assistir ao enterro. Quatro meses depois, quando retomou a consciência e soube dos detalhes da tragédia, chorou muito e nunca mais falou. Hoje, a filha Ana cuida da mãe, que está com o lado direito do corpo paralisado. Os filhos de Maria Senhora planejam cultivar os 30 hectares que a família recebeu no assentamento, fazendo vingar o sonho do pai morto no conflito. Mas a realidade, que não dorme e tampouco sonha, mostra a face mais cruel da tragédia que chocou o País: o descaso, a miséria e a falta de justiça. A julgar pela situação de penúria em que vivem os mutilados de Eldorado dos Carajás, o pesadelo não vai acabar tão cedo.