João Sayad conta por que deixou de ser banqueiro para enfrentar a tragédia financeira de São Paulo e trabalhar pela população da cidade

Afirmar que o atual secretário de Finanças e Desenvolvimento de São Paulo, João Sayad, é uma figura pública rara não é um exagero. PhD pela universidade americana de Yale, secretário da Fazenda de São Paulo e ministro do Planejamento na década de 80, presidente do Banco Inter-American Express até o ano passado, sente-se muito melhor e mais produtivo no serviço público, trabalhando em benefício de todos. Crítico arguto do neoliberalismo, “que já não deu certo antes”, e da política econômica do governo, o economista de 55 anos descreve nesta entrevista a situação encontrada nas finanças da prefeitura e fala dos seus planos para a cidade.

ISTOÉ

Qual é o quadro das finanças da cidade?

João Sayad

A primeira dificuldade é o gasto desenfreado, desordenado e irresponsável das duas administrações anteriores. Isso deixou para nós R$ 1 bilhão de dívida, R$ 4,5 bilhões de precatórios (que não é um problema municipal, é nacional) e a assinatura de um acordo de dívida com o Tesouro Nacional que começa a ser pago efetivamente no novo governo. A segunda é o fato de que oito anos de administração centralizada nas mãos dos governos Pitta e Maluf deixaram a burocracia alijada das decisões, com má vontade, desorganizada e mal-informada. Tudo aqui não funciona: os sistemas de informática e os sistemas de informações são precaríssimos. A terceira decorre, acho, dos próprios tempos que nós estamos vivendo. No governo municipal, pior do que nos governos estadual e federal, o grau de proibições legais, de formalismos e de impeditivos de qualquer tipo é muito grande. Aqui nada pode, tudo é objeto de obstáculos pelo Ministério Público, pelo Tribunal de Contas do Município, pela Câmara Municipal e pelo governo federal. Nada pode. A Lei de Responsabilidade Fiscal se soma a isso tudo, ela só consagra esse emaranhado de proibições. Mas isso não impediu a corrupção, pois nunca se roubou tanto como no governo municipal nos oito anos passados. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Eu fico pensando que o governo é tão amarrado – todos os governos – como parte do horror que a elite brasileira tem à vida pública. O administrador público é culpado até que se prove o contrário. Ele não pode fazer nada. É uma situação meio esquizofrênica. Do outro lado, ele pode fazer tudo, não precisa pagar as dívidas, se quiser, porque ele não quebra. Mas não pode contratar, não pode pagar salários corretos, tudo é formal, tem a licitação e a concorrência pública, que são regras de princípio anticorrupção, mas estão provando que não são.

ISTOÉ

O serviço ruim é atribuído à má administração, aos políticos.

João Sayad

 Mas também foi criado um ambiente negativo para o setor público. Alguns defendem a idéia de que o setor público nunca vai ser concorrente do setor privado porque não pode pagar salários altos. Agora, essa não é uma regra da natureza ou divina, é porque o setor privado não deixa. O setor privado brasileiro não admite o financiamento público das campanhas.

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Por quê?
 

João Sayad

 Porque daria para a esfera política uma independência inaceitável da esfera econômica.

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Há gastos injustificáveis?

João Sayad

Há muitas obras e serviços demasiado caros. Encontramos creches de mil metros por R$ 1 milhão. Isso é preço de casa no Jardim Europa. E há aluguéis absurdos que nós vamos rever, propondo uma redução talvez de 30%.

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Quanto a prefeitura paga de aluguel?

João Sayad

Todos os aluguéis somam R$ 25 milhões por ano. Com esse dinheiro a prefeitura poderia construir 250 mil metros quadrados na zona melhor de São Paulo. Daria quase 15 prédios de 20 andares.

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O que supera a imaginação?

João Sayad

O que mais nos entristeceu, vamos dizer assim, é o volume de precatórios: são R$ 4,5 bilhões. Nós imaginamos que eram R$ 2,5 bilhões, mas as informações estavam incorretas. Fomos levantar de novo e deu R$ 4,5 bilhões. Isso paga juros de 18% ao ano, 12% de juros moratórios e 6% de juros compensatórios, 18% ao ano mais correção.

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Dá quanto?

João Sayad

Se nós pagarmos, digamos, R$ 400 milhões de precatórios por ano, depois de oito anos, supondo dois mandatos, a prefeitura terá uma dívida da ordem de R$ 10 bilhões de precatórios. Os desapropriados ficarão insatisfeitos, o contribuinte terá gasto mal o seu dinheiro, porque 18% é um juro impagável, e a prefeitura continuará com uma situação financeira precária. Juros maiores do que a taxa de crescimento da economia (e aí se inclui o Banco Central do Brasil há muitos anos) são impagáveis. Quem paga esses juros é só o próprio governo, ou seja, só o contribuinte.

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O maior item é desapropriação?

João Sayad

 Desses R$ 4,5 bilhões, as desapropriações somam R$ 2,5 bilhões ou R$ 3 bilhões. O proprietário de um terreno ou casa desapropriada recebe à vista o valor estabelecido pelo juiz, reclama na Justiça que quer mais, ganha e entra na fila para receber com juros de 18% ao ano. Há várias desapropriações em que a pessoa já recebeu em juros quatro ou cinco vezes o valor do imóvel. É uma cadeia infernal.

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Quantas pessoas têm precatórios a receber?

João Sayad

 Numa estimativa grosseira, são três mil precatórios. Na média, dá R$ 1 milhão por pessoa, mas alguns têm R$ 50 milhões, R$ 100 milhões. Existem também entre os precatórios pequenininhos os chamados alimentares: a viúva, o funcionário que foi indenizado pela prefeitura.

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As contas da prefeitura, como estão?

João Sayad

Temos R$ 1 bilhão de atrasos este ano, que a gente acabou de renegociar com os fornecedores para pagar em quatro anos, são R$ 500 mil este ano e o resto em 2002, 2003 e 2004. A boa notícia é que a arrecadação de ICMS, da qual recebemos uma parte, vai bem porque ela é muito influenciada por tarifa de energia elétrica, preço de gasolina e tarifa telefônica, que só têm subido. A má notícia é que a cidade está caindo aos pedaços e não temos dinheiro para investimento. Não temos condições de lançar um programa habitacional, embora metade da cidade, cinco milhões de pessoas, viva em habitações clandestinas precárias, não tituladas. E há uma despesa anual com lixo de quase R$ 500 milhões.

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Isso é muito?

João Sayad

 Diante da arrecadação de mais ou menos R$ 70 por habitante por mês, é muito. Se você comparar essa importância com um condomínio, é abobrinha, é pouquíssimo. Isso é para pagar lixo, transporte urbano, um milhão de alunos nas escolas do ensino fundamental, graças a Deus dezenas de bibliotecas municipais, iluminação pública, manutenção das vias públicas, dos parques e jardins e a Guarda Municipal.

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Quais são as principais receitas e despesas da cidade?

João Sayad

 As principais receitas são R$ 2 bilhões de ICMS, R$ 1,8 bilhão de ISS e R$ 1,4 bilhão de IPTU. Somam mais da metade da receita total de R$ 8 bilhões. No lado das despesas, 39% se referem a gastos com pessoal, bem abaixo dos limites dados pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A manutenção da cidade e dos serviços públicos representa 34% do total. E 11% se referem a pagamento da dívida com o Tesouro Nacional.

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Como está o relacionamento da prefeitura com as empresas de ônibus?

João Sayad

 Os contratos que nós temos com as empresas de ônibus estão por vencer no final deste ano, eu acho, e a Secretaria de Transportes fará uma nova licitação. Algumas coisas terão que ser alteradas. As empresas estão sofrendo a concorrência dos perueiros, oneram o Tesouro Municipal e o serviço é de má qualidade para a cidade.

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O aumento da tarifa de ônibus significa que a reivindicação dos empresários é justa?

João Sayad

 Não acho justa não. Foi inevitável pagar para evitar greve. O aumento não está previsto, é uma exceção. É porque no acordo atual, se perder receita, nós temos que compensá-los. É uma compensação no escuro, nós estamos mal-informados de quanto custa o ônibus.

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Por quê?

João Sayad

 Porque não temos acesso correto às informações contábeis das empresas.

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Por um defeito de contrato?

João Sayad

 Não sei lhe dizer. A falha é nossa e provavelmente eles não querem ser transparentes também. A Secretaria de Transportes está fazendo um levantamento de quanto custa.

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Como o sr. vê o problema dos perueiros?

João Sayad

Os perueiros não são uma tarefa que possa ser resolvida pela polícia. Se o público gosta, se eles cobram menos e estão diminuindo a demanda de passageiros para os ônibus, ainda que se diga que é um serviço de má qualidade, fazem parte de um problema complexo. Se liberasse a concorrência, ônibus e peruas iriam todos servir os bairros abastados e deixariam de oferecer um transporte regular e contínuo para a periferia. Há outras complicações, como o vale-transporte, que a perua aceita por um valor menor e depois o dono do ônibus compra.

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E os projetos sociais, como estão?

João Sayad

O Renda Mínima já está regulamentado, acho que começa no final do ano. O Banco do Povo já tem uns três ou quatro técnicos com experiência em bancos do povo de outras cidades e estão se articulando com as empresas e os sindicatos.

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Como o sr. vê a Lei de Responsabilidade Fiscal?

João Sayad

Com a Lei de Responsabilidade Fiscal, São Paulo começa a pagar R$ 1 bilhão, no ano que vem vai para R$ 1,3 bilhão e a lei impede renegociação. Que negócio é esse? Por que o munícipe da cidade de São Paulo tem que pagar pelas incorreções dos governos anteriores e pela taxa de juros fixada pelo Banco Central, e tão rápido?

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O sr., que já foi ministro do Planejamento, acha que a economia do Brasil poderia estar menos vulnerável?

João Sayad

 Se tivesse mantido o dólar em valor alto por mais tempo, o de antes, não a partir de 1999, se não tivesse feito a aventura do Plano Real – que é sobrevalorizar o câmbio –, baixar as tarifas e se endividar ( e são quatro anos disso), estaríamos todos melhores, o governo, a sociedade, as indústrias, a agricultura. Não é uma tarefa difícil, era só ter sido menos dogmático, menos exagerado, menos radical, menos argentino. A questão que eu não sei responder é como foi possível destruir a indústria e a agricultura, privatizar tudo, eliminar o emprego da classe média brasileira, que são os empregos estatais, criar uma dívida de US$ 300 bilhões com apoio político. Essa dívida é muito pior do que a dos governos militares. O atual governo se endividou comprando dólar que voou. É como se você tivesse feito um empréstimo, comprado um carro e o carro fosse roubado. É a pior dívida que existe. Tudo por conta do saneamento financeiro e do controle do déficit público. Como é possível controlar o déficit público com juros a 40% ao ano? Essa é a verdadeira irresponsabilidade fiscal. Quem paga esses juros? O governo, ou seja, somos nós. Quem investe nesses juros? Os que eram industriais venderam tudo e vivem de juros.

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Antes de assumir as finanças de São Paulo o sr. era banqueiro. Em qual função se sente melhor?

João Sayad

 Aqui é uma batalha a favor de todos. No setor privado você tem a impressão de que é um jogo de soma zero, um ganha e outro perde. Aqui não, aqui eu acho que nós conseguimos produzir alguma coisa. Eu me sinto muito melhor, e mais produtivo, no setor público.

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O sr. tem atuado na iniciativa privada e no setor público. Como é essa alternância?

João Sayad

 Eu fico muito contente de ter tido experiências variadas. No fundo, me considero um professor. Leciono desde 1968 e é o que mais gosto e acho que sei fazer realmente. Mas essas mudanças de atividade me tornam crítico de todos os ambientes. Acho, por exemplo, que a universidade está muito preocupada com a concorrência entre seus integrantes, ou seja, o que vale é o “publique ou pereça”. O setor público está muito envolvido na competição democrática e eleitoral, que tem seus lados positivos. A competição, no entanto, aqui e na universidade, às vezes faz com que a gente se esqueça do objeto da nossa atividade, neste caso, a cidade de São Paulo. No setor privado também tem isso. Às vezes a empresa esquece de ganhar dinheiro e fica tentando atrapalhar o concorrente em vez de atender o consumidor ou o acionista.

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Há uma distorção?

João Sayad

Há uma concorrência tão exagerada em todos os lugares que até se esquece a sua finalidade. Costumo usar o exemplo de dois esportes, a corrida e a regata. Na corrida a pé, você corre contra você mesmo e é difícil ver alguém que passou o pé no outro ou deu uma cotovelada. Na regata ocorre o oposto, o velejador sai olhando para o outro barco e ele tenta atrapalhar, não está interessado em fazer o melhor tempo para si mesmo. Não é concorrência, é rivalidade. Eu acho que na política e na vida acadêmica estamos sofrendo essa rivalidade.

ISTOÉ

Na universidade trata-se de uma novidade?

João Sayad

 Os anos neoliberais que a gente está vivendo também são antiuniversidade, são anti-humanidade, são anti estudo pelo estudo. É por isso que a universidade vai mal. O que vai bem são os cursos especiais de administração de negócios, os MBAs.