Pior do que não conhecer determinado livro é saber de sua existência e não ter a menor idéia do que ele trata. Principalmente quando o “capa-dura” se enquadra entre os chamados imperdíveis. Para não ser confundido com um mero leitor de orelha de livro, a solução é comprar rapidinho os dois volumes organizados por Heloisa Seixas de As obras-primas que poucos leram (Record, vol. 1, 490 págs., R$ 52,90; vol. 2, 364 págs., R$ 41,90), reunião de 70 textos sobre títulos obrigatórios, assinados por escritores, jornalistas e especialistas para a extinta revista Manchete. Como a maioria das matérias, publicadas entre 1972 e 1977, era sugerida pelo próprio resenhador, o prazer fica transparente na fluidez e no tamanho dos textos, gigantescos para o “internético” padrão atual.

O filólogo Antonio Houaiss, por exemplo, sugeriu Ulisses, do irlandês James Joyce, que ele mesmo traduziu, reduzindo o catatau mais citado pelas vanguardas a um roteiro-chave composto por 18 episódios. E ainda brinca com o leitor. Ao falar do casal Leopold e Molly Bloom, protagonista do romance, diz que a mulher “coroa” o marido de “atributos imaginariamente cornofrontais”. Ao descrever Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, o cronista Paulo Mendes Campos fala da semelhança entre as observações de quem ingere LSD e certas aproximações da realidade narradas pelo romancista francês. A explicação está no fato de Campos ter experimentado a droga no começo dos anos 1960, como outros intelectuais no mundo todo, seguindo os preceitos do psicanalista de Harvard Timothy Leary. Com o tempo, ambos foram proscritos. Leary e o ácido.

José Guilherme Mendes faz eco aos aparentes disparates cometidos por Lewis Carroll em Alice no País das Maravilhas ao dizer que, apesar de difundido no mundo todo – na época (1971) somando 160 edições em 42 línguas –, trata-se de um livro de muitos e, ao mesmo tempo, de poucos leitores, já que cada um deles pode entendê-lo de modo diferente. Continuando a viagem dupla, pois diante da obra, crítico e criticado adquirem pesos semelhantes, José Lino Grünewald aponta
O casamento, de Nelson Rodrigues, como um dos maiores livros de ficção da literatura brasileira. A Lêdo Ivo coube ressaltar a importância da originalidade de D.H. Lawrence e seu Filhos e amantes, principalmente ao surgir em um ambiente estanque e estático como a rígida sociedade de classes britânica. Joel Silveira, por outro lado, parte da desimportância da obra de Monteiro Lobato, afirmando que não se pode dizer que qualquer livro do escritor possa ser incluído “nas obras-primas que poucos leram”, para louvar Os doze trabalhos de Hércules, seu 30º e último livro, lançado em 1943.

Na sucessão de páginas inspiradas, Viana Moog atraca-se com Os maias, de Eça de Queiroz; Roberto Mugiatti com O sol também se levanta, de Ernest Hemingway, e Josué Montello com Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Ruy Castro, na exuberância dos 26 anos, abre o texto sobre O Falcão Maltês esclarecendo os leitores mais eruditos que Dashiell Hammett não é um escritor de quarta categoria como eles pensam. “É de terceira”, esclarece. Os principais estão lá. Franz Kafka, João Guimarães Rosa, Erico Verissimo, Virginia Woolf, J.D. Salinger, Jorge Luis Borges, Graciliano Ramos, Dostoievski, Mark Twain, José Lins do Rego, Thomas Mann, Oscar Wilde, Aluísio Azevedo, Guy de Maupassant, todos mastigadinhos, prontos para ser lidos na íntegra. Não há mais motivo para silêncios constrangedores nas rodas inteligentes.