Ela não corresponde a nenhum dos estereótipos de uma pessoa doente. Doença grave. Aquela que muita gente não diz o nome. Tinha todos os motivos para raiva, revolta, inconformismo. Afinal, é boa moça. Sempre fez tudo que os médicos mandam. Não fuma. Consome pouco álcool. Nunca se drogou. Faz exercícios físicos. Não guarda rancor. Curte a vida. E é jovem, acaba de passar dos 50 anos! Ainda assim, na hora do check up, lá estava o danado. Mieloma múltiplo. Um dos malvadões. A medula enlouquece e começa a produzir plasmócitos em excesso, o que pode provocar tumores nos ossos, falência renal e inflamações no coração.

Acho que ela chorou um pouco no início. Não há quem não se abale diante da notícia de um câncer. Depois, focou toda sua energia em providências práticas – verificar o que o plano de saúde pagaria, identificar o melhor médico para a circunstância, estudar o tratamento. Fez tudo isso em menos de duas semanas. Desde então, o que mudou é que minha amiga anda com a bolsa cheia de remédios, pois parte da quimioterapia é via oral, e não desgruda de uma garrafa d’água: a hidratação protege os rins. Outro dia me disse que precisava sair para ajudar uma colega que estava com um problemão. Não pude evitar o ar de espanto. Quem é que tem um problemão? Morremos de rir juntas!
“Eu não tenho problema nenhum, quem tem é a minha medula e ela vai ter que trabalhar duro para resolver! Já avisei que a bagunça aqui dentro acabou!”

Não vi nela nem um único momento de autocomiseração. Não se trata de otimismo demais ou de falta de informação sobre a própria saúde. Minha amiga apenas não tem pena de si e não quer que tenham pena dela. É um choque para os que chegam oferecendo consolo. Espera-se de alguém doente que se deixe abater, que fique triste, que chore muito e com tudo isso construa uma cama quentinha para receber o medo e suas consequências. Além disso, qualquer debilidade preventiva atrai uma solidariedade reconfortante. O sofrimento costuma ser garantia de companhia. Quem abandona um ser que sofre? Ela, porém, decidiu que não seguirá o modelo coitadinha-de-mim-eu-tenho-câncer. Está viva, trabalhando, divertindo-se e seguindo todas as recomendações médicas para que a doença seja apenas mais um dos “pedágios da idade”, como ela costuma dizer.

A atitude positiva diante do infortúnio não é comum, mas é ainda mais impactante porque estamos falando de uma mulher. Jamais descreveria minha amiga como uma pessoa frágil, mas certamente como alguém de grande sensibilidade. Frágil e sensível são adjetivos bem diferentes, tenho aprendido, e se escrevo esse texto tentando me livrar de qualquer pieguice é para que ele seja digno de sua protagonista. A coragem que ela demonstra para enfrentar seu destino com tamanha altivez me inspira a apreciar ainda mais a vida em seu momento presente e planejar menos o futuro.

Tenho muito orgulho de minha amiga. Gosto, cada vez mais, de quem faz a primeira piada sobre si mesmo, de quem brinca com sua própria condição, de quem não arrasta correntes. Ninguém escolhe os próprios obstáculos, mas podemos decidir como atravessá-los: carregando todo o peso do desafio ou pairando qual anjo sobre eles.

Ana Paula Padrão é jornalista e empresária