"Em Dachau conheci o inferno e aquela horrível experiência marcou para sempre minha vida.” As lembranças daqueles dias difíceis da Segunda Guerra Mundial ainda são vívidas para Enrico Vanzini, 91 anos. Capturado pelos alemães, foi levado para o campo de concentração de Dachau, no sul da Alemanha, onde viveu por nove meses. Lá, entrou no comando especial, chamado de sonderkommando, e tornou-se uma espécie de mensageiro da morte. Foi encarregado do trabalho que os nazistas não queriam fazer: colocar os corpos dos mortos nos fornos crematórios e incinerá-los. Por vergonha, culpa e medo de que duvidassem de sua história, calou-se por mais de seis décadas. Nem sua família sabia como foi sua vida nesse período. Hoje, é o último sonderkommando italiano vivo. Uma rara testemunha das atrocidades que o ser humano é capaz de cometer.

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PASSADO
Vanzini antes de conhecer os campos de concentração, ainda jovem,
quando foi servir na Grécia pelo Exército italiano que havia invadido o país

“Não sabia o que um sonderkommando fazia. Só soube quando me jogaram no forno”, conta Vanzini. “Não tive escolha.” O prisioneiro que acabava no comando especial sabia que era um caminho sem volta porque, em algum momento, os nazistas o matariam para não deixar testemunhas. Vanzini escapou porque o conflito já estava no fim, mas viveu na pele os horrores da guerra. Às vésperas de completar 18 anos, viu evaporar seu sonho de se tornar jogador de futebol ao ser convocado pelo Exército. Designado a servir na Grécia, que havia sido invadida pela Itália, ficou no país até setembro de 1942, quando a Alemanha declarou guerra à Itália. Foi colocado em um trem rumo a Mônaco, onde trabalhou em uma fábrica de armas por um ano e meio. O local foi bombardeado e ele fugiu com outros dois soldados italianos a pé. A idéia era chegar até a Áustria. Depois que acabaram os suprimentos, roubavam batatas, cenouras e repolho das plantações para sobreviver. Conseguiram ajuda de uma italiana, mas ela era espiã e os entregou à Gestapo.

Separados, cada um tomou um destino diferente. Vanzini seguiu para Dachau. “Era um lugar onde você entrava, mas não saía nem morto porque queimavam seu corpo”, diz ele, que lá perdeu a identidade. Virou o número 123343 do galpão 8. Havia 60 galpões no campo de concentração onde cabiam 130 pessoas distribuídas em beliches sem colchão de quatro ou cinco andares. Depois de terem os corpos desinfetados, ganhavam finos pijamas listrados. Como era outubro e já fazia frio, os prisioneiros dormiam abraçados para se aquecer. “Na minha primeira noite dormi abraçado a um homem vivo e acordei abraçado a um homem morto. Morreu de frio durante a noite”, relata.

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HOJE
Aos 91 anos: ele levou mais de seis décadas
para contar sua história até para a família

Ele sobreviveu comendo arroz com verme e pão duro. Designado a trabalhar externamente na reconstrução de uma ferrovia, celebrou a oportunidade, pois era a chance de procurar comida no lixo. Porém, carregar trilhos sem luvas no inverno europeu, com a neve fresca queimando a pele, lhe custou os movimentos da mão direita. De volta à área interna de Dachau, virou sonderkommando. “Os generais da SS escolhiam quem eles queriam para esse serviço. Se a pessoa se recusasse a integrar o grupo, morria”, diz o historiador Cláudio Vercelli, do Instituo de Estudos Históricos Gaetano Salvemini. Na opinião dele, essa escravidão da morte foi uma das partes mais terríveis do nazismo. “Essas pessoas conviveram com o óbito antes que ele chegasse, porque sabiam que aquele seria o destino delas também”, explica Vercelli. Quem estava no comando especial tinha direito a mais comida porque precisava ter forças para carregar os cadáveres. 

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Foram apenas algumas semanas na função. “Todos os dias cerca de 300 pessoas eram incineradas. Uma vez percebi que um prisioneiro ainda estava vivo e disse ao soldado da SS. Ele mandou colocá-lo no forno”, conta. O trabalho ocorria à noite porque a fumaça que saía das chaminés era menos visível e o odor não era percebido por quem dormia. Certa vez, viu chegar um trem cheio de judeus. Separados das mulheres e crianças, os homens foram metralhados sem dó pelos soldados e tiveram os corpos incinerados. Em um dos últimos dias em Dachau, foi chamado por um membro da SS até a câmara de gás. “Ao abrir a porta, quase vomitei”, conta Vanzini. “Havia 50 corpos lá dentro. Tive de pegá-los e carregá-los até os fornos. A expressão deles era horrível, dava para ver o desespero no rosto daquela gente”. Essas vítimas morreram abraçadas e era difícil separá-las para colocá-las nos crematórios. “Eu puxava um braço e sentia os ossos se quebrarem.”

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Com o fim da guerra, Vanzini voltou à Itália e refez a vida como motorista. Optou por não contar a ninguém o que viveu e testemunhou, mas pesadelos sempre o acompanharam. O silêncio sobre seu passado foi quebrado quando foi descoberto por uma jornalista. Só então decidiu contar a seus familiares sua história. Quando foi preso na Grécia, Vanzini pesava 86 quilos. Quando deixou o campo de concentração, aos 23 anos, no dia 29 de abril de 1945, pesava apenas 29 quilos. Para expiar de vez o passado, ele decidiu retornar a Dachau na companhia da mulher e dos dois filhos. “Sabia exatamente onde ficavam os galpões, as casas, a cozinha, o chuveiro, a câmara de gás e os fornos. Vivi uma mistura de emoções, mas foi libertador.”

Fotos: Renato Gianturco 


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