A tradutora Sílvia Barbosa foi a uma cafeteria de Buenos Aires para assistir à partida entre Brasil e Camarões ainda na primeira fase da Copa do Mundo. Capixaba de Nova Venécia e há sete anos residente na Argentina, ela não se conteve e soltou um grito após o gol de Neymar que desempatou o jogo. “Todo mundo me olhou feio”, diz ela, que não usava camiseta da Seleção, nem qualquer adereço verde-amarelo. “Depois do terceiro gol, simplesmente mudaram de canal.” Naquela altura da Copa, cena semelhante já não era incomum para um portenho que acompanhava os jogos no Brasil. As relações entre torcedores brasileiros e argentinos, que no começo do Mundial variavam entre desconfiadas e bem-educadas, foram se deteriorando velozmente. As animosidades cresceram a tal ponto que no dia da final, 13 de julho, descambaram para a pura violência, dentro e fora do Maracanã e nos arredores da Fan Fest, em Copacabana.

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Com seu jeito debochado e passional, carregando uma bagagem histórica de cânticos provocativos contra os rivais brasileiros, os argentinos já chegaram ao País entoando a musiquinha “Brasil, decime qué se siente”. De início, a maioria da torcida brasileira, apesar da surpresa com a troça explícita ao futebol pátrio, reagiu com espírito esportivo e logo criou contravenenos também em forma de música (leia na pág. 51). Mas não foi o suficiente para os encrenqueiros dos dois lados, que partiram para a briga, gerando uma tensão que há muito não se via entre as duas nações. Sentimentos de revolta e indignação com a atitude dos adversários passaram a ganhar um conteúdo nacionalista fora de lugar e de sentido, fomentado inclusive por meios de comunicação dos dois lados da fronteira.

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VIOLÊNCIA
Depois de brigas em Copacabana após a final da Copa, perdida pela
Argentina, brasileiros destroem camiseta da rival (acima) e
turistas ateiam fogo à bandeira do Brasil

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Levas de turistas brasileiros em Buenos Aires e argentinos pelas praias brasileiras são prova de excelente relação, camaradagem e mútua admiração pela cultura e particularidades de cada um. O problema sempre foi o futebol, este esporte que teima em imitar a vida, confundindo paixões e invejas. Nesse ponto, antigas – e algumas recentes – manifestações de racismo por parte de facções de argentinos ajudaram a turbinar as hostilidades. “Macaquito”, como sinônimo de brasileiro, é a palavra-chave. Ela já aparecia em 1920, quando o jornal argentino “Crítica” publicou uma charge retratando os jogadores da Seleção Brasileira como símios, acompanhada de um texto intitulado “Macacos em Buenos Aires”. Na época, é bom lembrar, os brasileiros receberam solidariedade do próprio povo argentino. A história várias vezes teimou em reaparecer. Imagens disponíveis no YouTube mostram, por exemplo, uma Bombonera lotada para a decisão do Boca Juniors contra o Santos, em 1963. O coro da torcida é estonteante: “Pelé, hijo de puta! Macaquitos de Brasil!” O diário “Olé”, do grupo Clarín , em 1996, antes de um jogo contra o Brasil, estampou a manchete “Que venham os macacos” e precisou pedir desculpas. “Penso que a mídia potencializa a rivalidade, às vezes de forma exagerada”, disse à ISTOÉ o editor do “Olé”, Mariano Dayan. As generalizações, é claro, são incorretas. “A maioria dos argentinos nem sabe que essa expressão existe, mas alguns a utilizam para irritar o adversário durante o jogo”, diz o jornalista paranaense Ariel Palacios, autor de dois livros sobre a Argentina. No Rio, porém, durante a Copa, um argentino fez pose e gestos de macaco para um fotógrafo negro que registrava o acampamento dos hermanos.

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Do lado brasileiro também não há apenas flores, como demonstram as campanhas publicitárias que transformam os argentinos em caricaturas grotescas. “Eu me surpreendi com o grau de fanatismo antiargentino dos brasileiros nesta Copa. Esperava que eles pelo menos ficassem neutros”, diz o pesquisador Guillermo Schoua, especialista na história do clube portenho Boca Juniors. Aos 36 anos, ele acredita ser de uma geração diferente. “Se a Argentina não ganhasse a Copa, então que vencesse outra equipe do continente.” O sociólogo Ronaldo Helal, coordenador do Grupo de Pesquisa Esporte e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, acredita que até os anos 1980 a Argentina majoritariamente tratava o Brasil como exemplo de futebol bonito. Mas foi justamente nessa época que, por aqui, teria crescido o sentimento antiargentino.

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Além do histórico “macaquito”, não pode ser desprezado o papel que teve na rivalidade a nova canção dos argentinos, exaltando Diego Armando Maradona em detrimento de Pelé, em plena Copa no Brasil. É incrível que ela tenha mexido até com quem não costuma se deixar levar por essas coisas. “A musiquinha me deixava de cabelo em pé”, admite a professora paulista Adelina Chaves, que mora há mais de 30 anos na Argentina. “Era boba e injusta. Comemorei as duas Copas que eles ganharam, mas a Argentina ganhar uma Copa do Mundo no Brasil, dentro do Maracanã? Ah, isso não!” Até mesmo o pesquisador Guillermo Schoua criticou a letra. “Para mim, soou ridícula. Se tem algo que nenhum brasileiro fez foi ‘não parar de chorar’, como diz a letra.” De acordo com o antropólogo José Garriga, doutor pela Universidade de Buenos Aires, a construção de um adversário é uma estratégia de vendas eficaz.

Fora dos gramados sempre houve tensão entre Brasil e Argentina. O passado de crises ao longo da história não é pequeno. Uma das mais complicadas remonta a 1852, quando o governador de Buenos Aires Juan Manuel de Rosas foi derrubado pela oposição interna com a ajuda das tropas imperiais brasileiras. Durante a Segunda Guerra Mundial, outra divergência séria, com o Brasil do lado dos aliados e o governo vizinho neutro, mas muito mais próximo do Terceiro Reich. A construção da hidrelétrica de Itaipu, iniciada nos anos 1970, criou rusgas entre a ditadura brasileira e a argentina. As Forças Armadas dos dois lados sempre viram o vizinho como o adversário bélico potencial e durante toda a segunda metade do século XX a diplomacia bilateral foi contaminada pela disputa sobre quem teria hegemonia na América do Sul. Exemplo eloquente foram as divergências sobre a participação no Conselho de Segurança da ONU. “No começo dos anos 1990, a Argentina queria uma cadeira no conselho. No final desta década, envoltos pela crise econômica, os argentinos já aceitavam ajudar o Brasil a assumir a liderança local. Em 2000, passaram a apoiar o País”, afirma Ariel Palacios.

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Hoje em dia os atritos mais constantes acontecem nas alfândegas por causa de medidas protecionistas argentinas para barrar a entrada de produtos brasileiros. O volume de transações entre as duas nações cresceu significativamente depois da criação do Mercosul e o Brasil é hoje o maior comprador de produtos do país vizinho, enquanto os argentinos ficam em terceiro lugar em nosso ranking de exportações. Entre os principais parceiros comerciais do Brasil, a Argentina é aquele que mais compra produtos manufaturados, ou seja, é um aliado importantíssimo para manter de pé a indústria nacional. Apesar disso, nos últimos anos vários entraves burocráticos foram criados para afetar as importações de produtos brasileiros (leia abaixo). Esses obstáculos afetaram negativamente as exportações do Brasil e são criticados por empresários dos dois lados. O protecionismo saltou aos olhos quando Guillermo Moreno, ex-secretário de Comércio Interior argentino, passou a editar ordens não escritas para deter a entrada de mercadorias estrangeiras em 2010, provocando constantes filas de caminhões nas alfândegas. O ex-secretário também telefonava para empresas “aconselhando-as” a deixar de comprar certos produtos. “Ele foi uma doença que desestruturou fluxos comerciais. Conversei com vários empresários que queriam comprar, mas sofriam pressão política para que não o fizessem”, afirma Alberto Pfeifer, diretor-executivo do Conselho Empresarial da América Latina. “As barreiras tiveram um impacto grande e afetaram a importação de mercadorias brasileiras e a exportação das argentinas”, diz ele, que acredita que a relação bilateral pode melhorar caso o Mercosul volte a se pautar pela agenda econômica que norteou a fundação do bloco, em vez de se concentrar em torno de temas políticos, como acontece atualmente. A historiadora Maria Lígia Coelho Prado, do Laboratório de Estudos de História das Américas da Universidade de São Paulo (USP), diz que a rivalidade Brasil-Argentina começou nos gramados e migrou para outras esferas da sociedade.

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CIRCULANDO
Policial esvazia Vila Madalena, em São Paulo, após confusões
entre brasileiros e argentinos durante o torneio

Para ela, no entanto, apesar dos problemas pontuais as relações bilaterais são boas e a população de ambos os países não se vê como inimiga, ao contrário. Na Copa, os exageros partiram de ambas as partes, mas esses excessos não podem contaminar a relação entre os povos e a diplomacia que as duas principais forças do continente compartilham em áreas como a política e a economia. Quando prevalecem sentimentos de nacionalismo exacerbado e de exclusão, todos perdem. Ninguém acredita que a controvérsia gerada, e potencializada, pela última edição da Copa do Mundo vá prejudicar os dois países no turismo. “A rivalidade fica só no futebol. Talvez tenha se manifestado mais agora, mas a verdade é que os argentinos amam o Brasil”, afirma a assessora de turismo argentina Fabiana Nusinovich. “Vale também para os brasileiros que lotam Buenos Aires. Quando os preços são bons, eles vêm mesmo.” No Brasil, o presidente da agência de turismo Agaxtur, Aldo Leoni Filho, é da mesma opinião: “O número de viagens à Argentina vai subir por causa do câmbio, que está favorável. Um jantar em Bariloche custa metade do que em São Paulo.” Ao lado da cidade andina, ele coloca Buenos Aires como o destino mais procurado. Turistas como o marqueteiro argentino Kevin Zolotow confirmam a tese de Leoni Filho. “Fui várias vezes de férias ao Brasil, conheci brasileiros em viagens e as relações sempre foram positivas.”

Analisando o amargor de rivalidades deixado pela Copa, o psiquiatra e psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge anota que o amor e o ódio são duas faces de uma mesma moeda. “Somos na verdade seres muito agressivos”, diz ele. “Estamos o tempo inteiro sublimando nossa violência com brincadeiras ofensivas, por exemplo. E o próprio futebol é uma encenação da guerra, com uma equipe tentando invadir o campo da outra e conquistar o reduto adversário, que é o gol. O esporte em si não é agressivo, mas é uma colocação civilizada da nossa agressividade.” Exemplos disso, sustenta o psicanalista, são as palavras com sentido bélico usadas no jogo: “ataque”, “defesa”, “capitão” e “chute de canhão”, por exemplo. De acordo com Coutinho Jorge, a rivalidade possui ainda um outro motor: o conceito freudiano do narcisismo das pequenas diferenças – estamos sempre querendo nos diferenciar de quem é mais parecido conosco.

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Para Dayan, jornalista do “Olé”, quando a rivalidade termina em agressões físicas, como as que ocorreram em confronto no Rio, fica evidente que há algo de errado na sociedade. “Acho que alguns poucos não entenderam que isso é do folclore e nada mais. Quando há violência ou agressão, é porque o sujeito não entende o que é o esporte.” O antropólogo Garriga, que se juntou como observador participante a torcidas organizadas na Argentina para estudar o comportamento dos chamados barrabravas, os violentos torcedores daquele país, acredita que esse sentimento é válido enquanto o ambiente é respeitoso. “A rivalidade faz parte da competição e o esporte é uma competição.” O problema é quando ela se agrava e produz atos de violência ou discriminação.

Fotos: Pablo Jacob/Ag. o Globo; Mauricio Fidalgo/Futurapress, Joe Raedle/Getty images; Avener Prado/Folhapress; Alex Grim/Reuters/Latinstock
Montagem sobre foto de Gettyimages