Mais multímidia do que nunca, o diretor artístico da Globo Filmes, Daniel Filho, está lançando um kit cultural: o livro O circo eletrônico – Fazendo TV no Brasil (Jorge Zahar, 360 págs., R$ 39), o filme A partilha (cartaz nacional a partir de 8 de junho), adaptação da peça de Miguel Falabella que ele dirigiu e produziu, e o disco Gal de tantos amores, de Gal Costa, previsto para este mês, cuja produção divide com o maestro Wagner Tiso. O ex-semideus da Rede Globo (já foi diretor da Central Globo de Produções) conta a trajetória da tevê, da qual é um dos alicerces. Ele respira fundo quando alguém compara a diretora da Unidade de Televisão e Entretenimento das Organizações Globo, Marluce Dias da Silva, com o antigo manda-chuva e atual consultor (embora nunca consultado) da emissora, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. “É como comparar Pelé com Maradona, jogadores em épocas diferentes.”

Aos 63 anos, dois filhos e três casamentos, ele se diz feliz na vida pessoal e no trabalho. Aquele que, contrariado e raivoso, pulava como um orangotango insano enquanto gritava impropérios contra todos não existe mais. “Continuo tendo meus ataques, mas aprendi a equilibrar e a ouvir.”

ISTOÉ – Sobre o que fala A partilha?
Daniel – Quis falar nesse filme sobre uma coisa que as pessoas têm medo, que é a família. As perdas, as transformações, as miudezas… Defendo violentamente a personagem da chamada mulher careta, Selma, casada há 17 anos com o mesmo cara. Quero dizer: “A dona-de-casa é uma mulher normal!” A peça do Miguel (Falabella) está inteira no filme. As irmãs (Lúcia/Lília Cabral, Regina/Andrea Beltrão, Selma/Glória Pires e Laura/Paloma Duarte) estão maravilhosas. A adaptação é assinada por quatro pessoas: Miguel, Mark Haskell Smith, João Emanuel Carneiro e eu. Sou diretor e produtor majoritário.

ISTOÉ – Gal Costa envolveu-se numa polêmica ao defender publicamente o senador Antônio Carlos Magalhães, acusado de violar o painel de votação secreta. Isso pode afetar a carreira do disco Gal de tantos amores?
Daniel – Gal, Bahia, ACM, tudo isso é um mundo inteiramente à parte. A Gal é muito fiel à amizade. É capaz até de cometer um pecado para se manter fiel. Temos que ser mais democratas, a posição da Gal é exclusivamente dela e, na minha opinião, não afeta a artista. A manifestação é sincera, ela fez sem pensar uma, duas vezes. Foi levada pelo instinto. Nem sei se prestou atenção no que estava fazendo. De qualquer forma é impossível deixar de ouvir a Gal. É uma coisa nova pra mim, nunca tinha feito um disco com uma cantora da envergadura de Gal Costa. E vi a dificuldade que é arranjar novas músicas, boas letras… Mas, no final, ficou tudo maravilhoso. O disco é lindo. Se a polêmica vai atrapalhar, não sei, não é um problema meu, é da gravadora BMG.

ISTOÉ – Em O circo eletrônico você enaltece o trabalho de Boni na Globo. Ele está sendo desperdiçado como consultor?
Daniel – É realmente um desperdício o Boni não estar trabalhando ativamente na televisão. Concordo que a evolução da tevê exige mudanças. Antes ela era mais artesanal, não havia memorando. Como éramos poucos, a gente abria a porta, dava um grito e todos sabiam exatamente o que devia ser feito. Hoje a Globo é outra e precisa de um novo tipo de administração. Há dez anos, quando me retirei da emissora, não estava mais conseguindo fazer um trabalho correto. Não dava, era uma pessoa comandando 60.

ISTOÉ – Mesmo para uma pessoa centralizadora como você?
Daniel – Não sei se eu era tão centralizador assim. Acho que não, porque eu tinha uma boa equipe. A posição que Boni ocupava ou que ocupei é que não deve existir mais. Deve haver outro tipo de atividade em outro tipo de estrutura. É o que se está fazendo agora, articulado pela Marluce. Tenho certeza de que ela não completou seu ciclo de mudança. Está reorganizando a empresa e suponho que ainda vão ocorrer várias modificações.

ISTOÉ – Entre os funcionários há queixas de que a nova estrutura é excessivamente fria e profissional, em contraste com a gestão Boni.
Daniel – Essa comparação não faz sentido. Eles não devem ser comparados porque o tempo é outro. Pelé e Maradona não podem ser comparados. O jogo é diferente, as coisas mudaram. Não posso comparar as possibilidades que tive enquanto criador com as de alguém que está fazendo tevê agora, como Guel Arraes, Jayme Monjardim. Seria injusto, eles não tiveram as chances que eu tive naquela época.

ISTOÉ – E comparando você com você mesmo? Está menos nervoso?
Daniel – Quando a gente começa jovem, fica inseguro. Depois vai afrouxando e ouvindo mais opiniões. Acho que continuo o mesmo porque, de vez em quando, tenho uns ataques. Mas as pessoas não me levam muito a sério. Me deixam sozinho e eu espero até me amansar. Fico com cara de babaca, me perguntando por que gritei tanto.

ISTOÉ – Você se lembra de algum grito que hoje não repetiria?
Daniel – Vários, milhões. O tempo que eu perdi gritando na minha vida é um horror. Mas o pior é quando você grita com a pessoa errada: aquela que não tinha nada a ver com o assunto, estava passando e toma um esporro sem nem saber do que se trata.