Aos 27 anos, Carlos Odair Maia, conhecido como “gordinho”, já perdeu a conta de quantas vezes apanhou da polícia. Morador de uma favela em Foz do Iguaçu (PR), ele sobrevivia lavando carros e praticando pequenos furtos, o que o tornou “freguês” dos policiais e das cadeias da cidade. Ultimamente, vivia como “cigarreiro”, trazendo para comerciantes de Foz caixas com pacotes de cigarros contrabandeados na vizinha Ciudad del Este, no Paraguai, atividade que lhe rendia R$ 10 por viagem. Na manhã do sábado 24 de março, Maia e seu amigo Marcos da Silva foram presos por policiais militares à paisana nas proximidades da Ponte da Amizade, que liga Foz à Ciudad del Este. O delito, segundo a polícia: eles teriam roubado de sacoleiros uma caixa com 50 pacotes de cigarros contrabandeados. “Derrubaram a gente no chão, nos algemaram e nos levaram a um quartel da PM. O Martins (um dos soldados que os prenderam) veio com o cassetete descendo a ripa. Ele bateu nas costas, nas pernas, na bunda, nos braços. Levamos chutes e pontapés. O Marcos tinha no braço pontos de uma cirurgia, tomou umas cacetadas e a ferida abriu. Depois, nos obrigaram a fazer faxina no banheiro”, contou Maia a ISTOÉ. Esse seria apenas mais um registro banal do violento cotidiano das prisões brasileiras não fosse a atitude incomum de um delegado da Polícia Federal de Foz, Jessé de Almeida Ferry, que estava de plantão naquele dia. Ao levá-los à delegacia de polícia, os PMs não conseguiram provar que os detidos tinham roubado os cigarros. Por isso, eles foram encaminhados à sede da Polícia Federal para que fossem autuados por contrabando, um delito federal. O delegado Ferry estranhou o fato de os acusados terem sido presos às 9h30 e somente levados à PF cinco horas depois. “Ele viu que minhas pernas estavam roxas e perguntou: o que foi isso? Eu nem ia contar, ia ficar quieto. Esse Martins já me bateu muitas vezes, mas eu nunca dei queixa. Mas desta vez eu estava trabalhando”, argumenta Maia, com lógica peculiar. Depois de um exame de corpo de delito, o delegado deu voz de prisão aos PMs José Carlos Martins de Oliveira e Vilson Martins por crime de tortura.

Simbolismo – “O caso é simbólico porque, desde que a tortura passou a ser um crime imprescritível e inafiançável no Brasil, tipificado na Lei nº 9.455 de 1997, é a primeira notícia que nós temos de que uma autoridade de ofício, por iniciativa própria, ao tomar conhecimento de que estava configurado um caso de tortura, tenha autuado os policiais em flagrante”, afirmou a ISTOÉ o deputado Nelson Pellegrino (PT-BA), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Em face das ameaças que os dois supostos cigarreiros estariam recebendo de policiais, Pellegrino solicitou a inclusão deles e de suas famílias no Programa de Proteção às Testemunhas do governo federal. O episódio ganhou dimensão internacional e foi relatado ao Comitê contra a Tortura da ONU, em Genebra (Suíça), onde, até o próximo dia 15, o governo brasileiro deve prestar contas de como vem atuando no combate a esse crime.

“Estou muito chateado”, diz o soldado da PM José Carlos Martins de Oliveira, 33 anos, há 13 na corporação e com comportamento considerado exemplar. Ele e o soldado Vilson Martins tiveram a prisão relaxada por determinação da Justiça depois de permanecerem dez dias presos na PF. “Nós não conseguimos provar que a mercadoria que estava com eles era roubada, por isso não tivemos como autuá-los em flagrante de furto, embora pudéssemos ser presos em flagrante por tortura”, reclama. “Ficamos com os dois durante cinco ou dez minutos no máximo, o tempo para que a viatura chegasse. Não tivemos mais contato com eles”, alega. “Eu só voltei a vê-los às 16 horas, quando nós fomos à PF para realizar o flagrante. Às 19 horas, ficamos abismados quando recebemos a voz de prisão por tortura.” O policial afirma que os presos não resistiram à prisão e foram entregues à PF em condições físicas normais. “Se eles tinham lesões, elas não eram visíveis”, diz, sugerindo que as feridas podem ter sido provocadas pelos próprios presos. “As lesões foram consideradas leves, segundo o laudo de exame de lesões corporais. Os meus clientes não podem ser enquadrados no crime de tortura. No máximo, houve uma abordagem pesada”, diz o dr. Luiz Eduardo da Silva, advogado dos PMs. “Na minha opinião, houve precipitação da autoridade policial. É só dar uma olhadinha na vida pregressa desses cidadãos”, insinua. O delegado Ferry discorda. “O policial que hoje dá um tapa, amanhã dará um soco, e, além, poderá chegar ao extremo de causar a morte.”

Mas para a dra. Sandra Cavalcanti, advogada dos cigarreiros, a parte mais grave dessa história é que, depois do episódio, as famílias de Maia e de Silva foram ameaçadas, supostamente por policiais. Anair Basto, mãe de Carlos Odair Maia, declarou à Polícia Federal que um desconhecido a procurou dizendo que eles deveriam “retirar a queixa” contra os PMs, senão iriam se arrepender. “Você vai acabar achando seu filho com a boca cheia de formiga”, disse ele. “Eles podem jogar um quilo de farinha nas costas de seu filho. Vocês cutucaram o vespeiro com o pau curto”, acrescentou o desconhecido. Durante vários dias, veículos suspeitos ficavam parados em frente à sua casa. “Chegaram a ameaçar pôr 20 anos de flagrante, quer dizer, iam colocar droga em mim”, acusa Maia.

Prática sistemática – O caso dos cigarreiros vem à tona justamente no momento em que o País está sendo “sabatinado” pela ONU em Genebra sobre o combate à tortura. Apesar de o Brasil ser signatário da Convenção sobre a Tortura, adotada pela ONU em 1984, e de ter transformado essa prática em crime hediondo com a Lei nº 9.455, de abril de 1997, os maus-tratos a prisioneiros sob custódia do Estado continuam sendo disseminados e sistemáticos no País. Em seu relatório divulgado no mês passado, o relator especial sobre Tortura da Comissão de Direitos Humanos da ONU, Nigel Rodley, afirma que a polícia rotineiramente espanca e tortura presos suspeitos de crimes “para extrair informações, confissões ou dinheiro”. Para ele, a lei de tortura é “virtualmente ignorada”. O fato de não punir agentes policiais infratores cria “um clima de impunidade que estimula contínuas violações de direitos humanos”.

“Em Genebra, o governo vai reconhecer que existe tortura no Brasil, como já fez publicamente o ministro da Justiça quando da elaboração do Relatório Rodley”, diz o deputado Nelson Pellegrino. “Mas vai dizer que está fazendo algo a respeito, que o governo aprovou a lei, tem feito campanhas, mas que o problema é das prisões, das Febems, ou seja, a principal responsabilidade é dos governos estaduais”, diz o deputado. “Por isso, defendemos a federalização dos crimes contra os direitos humanos”, acrescenta.

“Não conheço nenhuma condenação por tortura no País. Esse é o caráter endêmico desse crime entre nós: a tortura é aceita como prática normal. Essa é uma cultura que precisamos acabar. Devemos buscar um questionamento nacional, como na época em que a tortura a presos políticos na ditadura foi denunciada e repudiada”, completa Pellegrino.