Em dias ensolarados, Ronald Biggs gostava de tomar chope gelado e comer churrasquinho em seu sobrado, no bairro carioca de Santa Teresa. Quem quisesse posar na piscina ao lado do legendário assaltante do trem pagador tinha de pagar a bagatela de US$ 60. Imagens como esta fizeram com que Biggs, 71 anos, cabelos brancos, brincalhão e sempre rodeado de belas mulheres, ganhasse a fama de bon vivant, cultivada em 30 anos de impunidade tropical. Durante esse período, foram várias as tentativas de Londres para levá-lo de volta a uma prisão britânica. Mas, em 1974, ele recebeu permissão para ficar no Brasil depois de provar que teve o filho Michael Biggs, hoje com 26 anos, com a brasileira Raimunda Rothen de Castro. Os últimos esforços dos britânicos para extraditá-lo terminaram em 1997, quando a Justiça brasileira decidiu que Biggs poderia ficar definitivamente no País, já que haviam se passado muitos anos desde o famoso crime. Mas, na segunda-feira 7, o assaltante surpreendeu a todos ao se entregar às autoridades britânicas.

O mais famoso ladrão inglês chegou ao aeroporto de Northolt, nos arredores de Londres, num avião fretado pelo jornal sensacionalista The Sun. Em apenas quatro minutos, ao lado do agente da Scotland Yard John Coles, Biggs confirmou sua identidade e foi transferido para a prisão de alta segurança de Belmarsh, que dispõe de serviços hospitalares e pode ser apenas uma passagem antes de ser decidido seu destino final. Dias antes de deixar o Brasil, seu filho Mike fez um acerto por telefone com o periódico, que pagou cerca de US$ 63 mil pelas entrevistas exclusivas com Biggs e sua família. A Scotland Yard afirma ter recebido um e-mail de alguém que alegava ser Biggs e desejava se entregar.

Decisão polêmica – Nos últimos anos, três derrames deixaram o veterano ladrão praticamente sem fala e com dificuldades de andar. Por ele estar mal de saúde, alguns veículos da mídia do Reino Unido especularam que ele teria voltado apenas para se beneficiar dos serviços médicos do país. O filho músico, Mike, que viajou com o pai, foi acusado de se beneficiar com o dinheiro recebido do jornal britânico. Ele se defendeu afirmando que Ronald Biggs “escolheu voluntariamente voltar para a Inglaterra, pois queria passar seus últimos dias no país que ele considera ser sua casa”. Em prantos, numa entrevista coletiva em Londres, Mike disse que “a decisão de meu pai voltar foi contra a vontade dos familiares”. O vizinho e amigo de Mike, o fotógrafo Renan Cepeda, disse a ISTOÉ que descarta completamente a hipótese de que Michael Biggs teria vendido o pai por dinheiro. “Isso é um absurdo! O aspecto dele era de quem estava definhando, mas o Ronnie está absolutamente lúcido e sabe o que está fazendo”, garantiu. O fotógrafo conviveu durante 11 anos com a família Biggs e afirma que pai e filho se davam muito bem.

A repentina rendição de Biggs à polícia inglesa também causou estranheza entre seus advogados brasileiros, Wellington Lins dos Santos e Luiz Artur Rangel, os responsáveis pela ação contra sua extradição, em 1997. “Ele disse que aqui era sua casa”, afirmou Lins dos Santos a ISTOÉ. “Não tenho prova de nada, mas os jornais especulam que haja benefícios materiais envolvidos. Se for verdade, é chocante que um filho aceite isso. Jamais faria isso com meu pai”, disse ele.

A grande dúvida agora é saber se Biggs cumprirá o restante da pena a que foi condenado (28 anos). Seus advogados ingleses estão tentando minimizá-la, alegando suas más condições de saúde. A lei britânica permite que o preso seja libertado, caso seja provado que ele está em fase terminal. O médico da penitenciária onde está Biggs, Theodoro Dalrimple, afirmou que será “uma decisão política” libertar ou não o assaltante. A oposição aproveita o debate para acusar o primeiro-ministro Tony Blair de ter armado a situação às vésperas das eleições, lucrando com o fato de prender alguém que ficou famoso por driblar a polícia.

Ronald Biggs ficou mundialmente conhecido por ser um dos responsáveis pelo audacioso assalto, no dia 8 de agosto de 1963, ao trem que fazia a rota de Glasgow, na Escócia, para Londres, na Inglaterra. Ele fez parte de uma gangue de 15 ladrões, que, inspirada nos filmes do Velho Oeste, resolveu assaltar um trem, levando 120 sacolas com notas que somavam 2,6 milhões de libras (equivalentes hoje a US$ 50 milhões). O maquinista Jack Mills, traumatizado não voltou mais a trabalhar e morreu em 1970. Seu filho disse que espera que Biggs “apodreça na cadeia”.

A história do assalto ganhou versões pitorescas, contadas inúmeras vezes pelo próprio Biggs a visitantes que subiam as ladeiras cariocas para vê-lo. Entre elas, Biggs revelou uma vez ao fotógrafo Cepeda que, dias antes de assaltar o trem, ganhara uma bolada num jogo, mas mesmo assim não desistiu do roubo porque já tinha dado sua palavra à gangue. Preso logo depois do assalto, Biggs passou 15 meses na prisão de Wandsworth. Em 1965, conseguiu escalar uma muralha e fugiu em um furgão. Da Inglaterra, ele foi para a Austrália, onde teve dois filhos.

Biggs chegou ao Brasil em 1970, via Panamá e Venezuela. Carpinteiro, fez os próprios móveis de sua casa. Segundo seus advogados brasileiros, trouxe pouco dinheiro do assalto para o Brasil e vivia modestamente das entrevistas com jornalistas e curiosos do mundo inteiro. Sua empregada, Rosalina Pereira dos Santos, disse que limpa a casa todos os dias com esperança de seu patrão voltar. “O lugar dele é aqui”, disse Rosalina, que cuidou de Biggs por 22 anos. Mas seu patrão parece já ter proferido seu último desejo: entrar em um pub inglês e tomar uma cerveja.  

Colaborou: Clarisse Meireles (Rio)