Questões de vida e de morte, para os egípcios, eram reservadas apenas ao coração. No músculo que bombeia sangue para todos os outros órgãos do corpo ficaria a sede da razão e da emoção, da memória e da sabedoria, da alma e do amor. O coração era o único órgão preservado nos corpos mumificados dos faraós, que passavam parte da vida obsessivamente ocupados com a construção de monumentos para abrigar seu cadáver, além da comida, de jóias, de parentes e animais de estimação que lhes deviam acompanhar na viagem em direção à imortalidade. A civilização egípcia, que surgiu por volta de 3100 a.C., acreditava que depois da morte seria possível comer, beber e apreciar o odor dos incensos. Por isso, qualquer dano ao corpo e à sua essência – o coração – era considerado uma maldição terrível para a chegada da “segunda morte”, segundo descreve o papiro Ebers, uma espécie de enciclopédia médica usada durante a 18ª dinastia do Egito, a mesma do faraó Tutankhamon.

Mero coadjuvante no ritual de mumificação, o cérebro era destruído por um instrumento pontiagudo parecido com uma agulha de crochê, que era enfiado no nariz até a massa encefálica virar suco e escorrer pelas narinas. Pulmões, estômago, fígado e intestinos eram removidos a partir de uma incisão no abdome, feita pela autoridade religiosa da época. A preparação da múmia chegava a durar 70 dias e, durante pelo menos metade desse tempo, o corpo ficava coberto por um mineral chamado natrão, sal que desidrata os tecidos, fazendo com que, pela falta d´água, nem mesmo as bactérias e os fungos responsáveis pela decomposição consigam sobreviver. Para proteger a pele, os corpos eram então envoltos por ataduras feitas de linho, com orações desenhadas sobre o mesmo tecido. Essa era a chave para a entrada no mundo do além-túmulo. A mumificação nasceu como artigo de luxo destinado aos faraós e a outros integrantes da nobreza, mas com o passar do tempo outras classes sociais tiveram acesso à técnica, que ficou mais simples e barata. A múmia nada mais é do que um corpo de um ser humano ou de animal preservado da decomposição. Para isso há dois processos, o artificial, praticado pelos egípcios, e o natural, em que a ação do vento quente do deserto ou do frio das montanhas de neve eterna mantém o corpo intacto.

Incas – As múmias mais antigas do mundo foram encontradas no norte do Chile e no sul do Peru e antecedem as tumbas dos faraós em dois mil anos. Enquanto os egípcios buscavam preservar o corpo para ganhar vida eterna, o povo chinchorro, do Chile, transformava seus mortos em estátuas de barro, retirando a carne e recheando o esqueleto de lama. “Era uma cultura arcaica, sem hierarquia social, sem cerâmica, sem arquitetura imponente nem cerimonial, mas que produziu um sistema de mumificação muito sofisticado”, explica a bioarqueóloga Sonia Guillén, diretora da Fundação de Bioantropologia do Peru, que estuda 223 múmias, algumas delas encontradas no território de Chachapoya, dominado pela civilização inca. Os povos andinos tinham aguçado senso prático. Faziam oferendas em troca de chuvas, colheitas fartas e proteção dos deuses. Os cerimoniais de adoração ao deus Sol aconteciam em santuários nos picos elevados da cordilheira dos Andes. Ali, os corpos dos sacrificados eram mumificados ao sabor do vento gelado. Estudos científicos comprovam que os sacrifícios coincidiam com fenômenos naturais dramáticos, como terremotos, eclipses e seca.

No mundo das múmias também há suas vedetes. O líder revolucionário comunista Vladimir Ilitch Lenin e a ex-primeira-dama da Argentina Eva Perón também são célebres por outro motivo: o estado de conservação de seus corpos. Depois da morte de Lenin, em 1924, cientistas soviéticos trabalharam em segredo, num laboratório instalado embaixo do mausoléu. Ali, retiraram todos os órgãos do bolchevique e mergulharam seu corpo numa solução de formol, um antisséptico que evita o rompimento dos tecidos, e glicerina, para manter a elasticidade da pele. Depois de várias semanas de banho de formol, Lenin enfim se tornou eterno, embora haja rumores de que o terno escuro esconda um corpo em decomposição. Ainda assim, o rosto e as mãos parecem perfeitas e recebem nova camada de formol a cada 18 meses.

Evita ocupa um capítulo especial na história das múmias. Depois de sua morte por câncer, em 1952, a água de seu corpo foi drenada e substituída por cera. “A técnica é assombrosa, dá a impressão de que cada célula foi encerada por dentro”, diz o americano Bob Brier, médico de formação e egiptólogo por paixão, que apresenta o programa Revelando o misterioso mundo das múmias, série que o canal de tevê pago Discovery exibirá a partir de 27 de maio. Brier estuda as múmias para saber se o mal de Alzheimer já existia no Egito. “A investigação das múmias ajudará a compreender as enfermidades e como elas se desenvolveram”, diz o egiptólogo, que ganhou notoriedade em 1994, ao usar as observações do historiador Heródoto para colocar em prática a técnica de mumificação. No primeiro episódio do programa, Brier mostra como transformar um cadáver em múmia. Em entrevista a ISTOÉ por telefone, ele disse que não repetiria a dose. É preciso ter estômago e coração fortes para chegar ao fim da cirurgia.