Nem adianta querer jogar a responsabilidade em São Pedro. O corte de energia elétrica que o País enfrentará a partir de junho é o resultado de um coquetel bastante apreciado pelo poder público nacional: falta de planejamento, de transparência e de coordenação. O festival de barbeiragens federais é tão grande que há o risco de o racionamento ser estendido até 2002. Somente na terça-feira 8, durante uma reunião do Conselho Nacional de Política Energética, a área econômica do governo tomou conhecimento da dimensão do problema. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, surpreso, duvidou do corte de 20% no fornecimento apresentado pela equipe do Ministério das Minas e Energia e decidiu estudar melhor os números. Malan ignorava o que o ONS, empresa privada que administra a distribuição de energia elétrica no País, estudava desde o ano passado e apontava abertamente desde fevereiro. E muitos especialistas se cansaram de repetir publicamente inúmeras vezes. “A área econômica do governo não participou das discussões e vai precisar de tempo para avaliar os efeitos dos apagões sobre a economia”, diz o físico e ex-ministro de Ciência e Tecnologia José Goldemberg, membro do conselho. Goldemberg evita dar detalhes do que ouviu das autoridades durante a reunião de terça-feira, mas o resumo que faz é uma boa medida do tamanho do túnel que o País terá de atravessar: “Está uma confusão dentro do governo”, resumiu.

Marcha à ré – Na quinta-feira 10, os auxiliares de Malan confirmaram a extensão do sacrifício, que, conforme o cálculo de técnicos das distribuidoras de energia, deverá significar apagões diários com duração média de três a quatro horas em quase todo o País. E, no mesmo dia, o ministro Pedro Parente (Casa Civil), homem de confiança de Malan, foi nomeado o coordenador da força-tarefa do governo responsável por uma saída para a crise. Ficará encarregado de encontrar recursos para bancar os incentivos a quem conseguir economizar energia. Ao menos foi o que o presidente Fernando Henrique anunciou quando foi à tevê dizer que o governo não iria mais multar os consumidores. A forma como se deu a marcha à ré do governo nesse ponto mostra bem a desarticulação reinante. Foi preciso o presidente da Agência Nacional do Petróleo (ANP), David Zylbersztajn, genro do presidente Fernando Henrique, entrar na história para convencer FHC a derrubar o sistema de multas e cotas. De qualquer forma, Malan pediu mais 15 dias para examinar o problema, para desespero de empresários e consumidores, em geral, impedidos de planejar. Somente no próximo dia 23, uma semana antes do racionamento, o brasileiro saberá exatamente por quanto tempo – e em que condições – ficará sem luz.

Além do desconforto da falta de energia propriamente dita, o brasileiro terá de enfrentar os efeitos de mais um golpe sobre o desempenho da economia, já abalada neste início de ano pela crise argentina, a recente elevação dos juros e a retração da economia mundial. As estimativas de queda do PIB chegam a 1,5% somente por conta do racionamento, se bem que muitos economistas consideram o cálculo prematuro, já que as regras ainda não estão claras. Estudo realizado pelo economista Fernando Garcia, da Fundação Getúlio Vargas, do Rio, estimou que mais de 800 mil postos de trabalho serão fechados ou deixarão de ser abertos e o déficit comercial poderá crescer até US$ 1,6 bilhão. Ou seja, tudo aquilo de que o País não precisa.

No Palácio do Planalto, a ficha, finalmente, parece ter caído. O assunto virou prioridade absoluta. Em primeiro lugar, porque é certo que os brasileiros vão cobrar nas urnas a conta imposta. “Essa crise é muito grave e vai ter efeitos sobre as eleições presidenciais de 2002”, reconhece o líder do governo no Congresso, deputado Arthur Virgílio (PSDB-AM). Nos bastidores, o Planalto tenta jogar a culpa pelo amadorismo no planejamento do corte sobre o ex-ministro das Minas e Energia, Rodolpho Tourinho, apadrinhado do ex-presidente do Congresso Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), que ocupava o posto até o início de abril. Some-se a isso o fato de o programa emergencial de construção de usinas termoelétricas estar atrasado por conta da indefinição sobre o critério de correção das tarifas a serem cobradas pelas novas usinas, uma pendenga que se arrasta há seis meses. A intenção era atrair empresas privadas para o negócio. Mas as candidatas querem a garantia de que não perderão dinheiro, já que o gás para as usinas virá da Bolívia e será pago por elas em dólares. Como as tarifas para o consumidor final serão cobradas em reais, há o risco de a moeda brasileira se desvalorizar e reduzir a margem de lucro das termoelétricas. Diante da gravidade da crise, o Ministério das Minas e Energia acenou na semana passada com uma possível solução para o impasse: ao que parece, a Petrobras assumirá o chamado risco cambial e os eventuais prejuízos.

Orçamento – O problema teria sido evitado, isso sim, se, ao longo dos anos 90, o governo não tivesse sistematicamente optado por cortar os investimentos das estatais – inclusive da Eletrobrás – como solução de ajuste orçamentário, afirmam os especialistas. Na última década, por exemplo, enquanto o consumo de energia cresceu em média 4,1% ao ano, a oferta aumentou anualmente apenas 3,3%, de acordo com o engenheiro Ildo Sauer, da Universidade de São Paulo. Para suprir o déficit, as usinas abusaram das suas reservas. Na região Sudeste, onde estão 80% dos reservatórios do País, o nível é de apenas 33% da capacidade, quando o normal seria estarem pela metade.

Juscelino – A falta de investimentos para a ampliação da capacidade de geração de energia tem relação direta com a privatização das hidrelétricas, que não obrigou os novos proprietários a cumprir metas de investimento. O engenheiro Joaquim Francisco de Carvalho, conselheiro do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico – Ilumina –, uma ONG que reúne alguns dos maiores especialistas em energia do País, considera que os novos proprietários das hidrelétricas simplesmente consideraram que seria mau negócio investir. “Vale lembrar que, de 1900 até 1960 os grupos estrangeiros e as empresas privadas nacionais dominavam o setor elétrico e instalaram uma capacidade total de apenas 3.500 MW. Por isso, e não por motivos ideológicos, o Estado, ainda na gestão Kubitschek, foi levado a aplicar gigantescos fundos públicos no setor, atendendo a insistentes apelos do empresariado industrial. A capacidade instalada expandiu-se então rapidamente, atingindo cerca de 60.000 MW, em 1995”. O risco está justamente em o País voltar a esse estágio “pré-juscelinista”, avalia o engenheiro. “Até nos Estados Unidos, onde quase tudo é privado, as hidrelétricas são controladas por empresas públicas”, afirma. Além de investir nas termoelétricas e acelerar a conclusão de hidrelétricas, o governo deveria investir em pequenas geradoras de energia, também à base de gás, diz o físico Luiz Pinguelli Rosa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Na geração distribuída, as empresas usam parte da energia gerada e podem vender o excedente. Mas tem de haver uma política definida para isso, o governo deve atrair o investidor”, diz Pinguelli Rosa. O ex-ministro Goldemberg afirma ainda que é preciso inclusive passar por cima de questões ambientais, já que a crise é grave. “O governo paulista tem de enfrentar os ambientalistas e pôr a usina Henry Borden, de Cubatão, para funcionar, mesmo que isso aumente a poluição da represa Billings. É preciso optar entre um pouco mais de poluição ou a escuridão”, diz Goldemberg.

O mais provável é que a maior parte do sacrifício recaia mesmo
sobre os consumidores residenciais e o comércio, conforme
membros do governo já reconhecem. “A prioridade é proteger o emprego e reduzir o impacto do racionamento sobre a economia”, diz o secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Cláudio Considera. Algumas grandes empresas eletrointensivas, como siderúrgicas e empresas do setor químico, deverão ser chamadas para contribuir – a idéia é tentar reduzir o custo social da falta de energia.

A pressão contra vai ser grande

Adriana Souza Silva

A próxima quarta-feira 16 poderá se transformar numa autêntica sexta-feira 13 para o Programa de Privatização do Estado de São Paulo, que colocará à venda o último bloco de uma das maiores estatais energéticas do País. Difícil imaginar um momento pior para o leilão da Cesp-Paraná. Do preço mínimo pedido pela estatal ao fato de a venda ocorrer num cenário delicadíssimo para o setor energético brasileiro, as críticas à iniciativa do governo paulista são consideráveis. Há pelo menos dois pedidos de liminares para impedir o leilão. O primeiro vem do Ministério Público Federal de Bauru, que exige do comprador uma produção maior do que os 16,5% de energia em oito anos, como prevê o edital. O Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo também recorreu à Justiça, questionando o baixo valor atribuído à estatal – R$ 1,73 bilhão. “Hoje a empresa gera pelo menos 300 megawatts de potência a mais, se comparada a dezembro, quando o leilão foi cancelado”, diz o diretor do sindicato, Carlos Augusto Kirchner. “Sem contar a valorização do preço da energia”, diz ele.

Vem de Minas Gerais, entretanto, a pressão mais forte para que a Cesp-Paraná não saia da administração pública. O governador Itamar Franco conseguiu que a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) permitisse a participação da Cemig, estatal energética mineira, no leilão. Já a tática do ex-deputado e advogado João Cunha é lembrar aos investidores que, como futuros controladores, poderão adquirir uma dívida de quase R$ 5 bilhões, fruto de uma ação popular por conta da parceria da estatal no Consórcio Paulipetro, de 1979. Soma-se ainda a reação da população com o anúncio do racionamento de energia, motivado, segundo vários especialistas, pelo atual modelo de privatização levado pelo governo federal. “Colocar um patrimônio desses à venda num momento tão crítico é um equívoco”, avalia José Walter Merlo, ex-presidente da Eletropaulo e da Cesp, hoje à frente da Associação dos Aposentados da Fundação Cesp. A privatização também renderá uma audiência pública na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, ainda sem data marcada.

 

 

Vento a favor

Apesar do potencial respeitável de produção de energia eólica, o Brasil não pode esperar que os ventos o livrem do iminente colapso energético. Hoje, todas as turbinas eólicas instaladas no País geram apenas 21 megawatts de potência, usados basicamente para a carga de baterias, bombeamento de água e eletrificação rural. Uma pena, já que o custo de geração de energia eólica – R$ 140 por MW/h – é quase o mesmo que da termoelétrica, de R$ 100 por MW/h, com a vantagem de a área de uma central eólica poder ser melhor aproveitada. Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e Paraná são os Estados que melhor aproveitam essa fonte de energia. Para efeito de comparação, na Dinamarca, 12% de sua energia vem dos ventos. No Norte da Alemanha, 16%. O governo brasileiro estima que, na melhor das hipóteses, esse índice chegue a 0,5% do total de energia gerada no País até 2010.

 

ABC DO RACIONAMENTO

Como será o racionamento?
Por enquanto, sabe-se que haverá corte de energia em certas horas do dia, a partir de 1º de junho. O governo estuda como fazer o País consumir 20% menos. Todos serão atingidos: empresas, hospitais, residências etc.

Qual a solução para o problema?
Por mais que chova, a água de um reservatório, em tese, só deve ser usada nos períodos de estiagem. É preciso, portanto, ampliar a geração de energia, apressar a construção de termelétricas, concluir hidrelétricas já iniciadas e construir novas plantas e incentivar a co-geração – sistema em que as indústrias, por meio de um gerador, também produzem energia

Por que vai haver racionamento?
O setor recebeu menos investimentos do que o necessário para acompanhar o consumo. Para manter a produção foi necessário usar mais água dos reservatórios que alimentam as usinas. Esse fato, somado à escassez de chuvas, fez com que o volume de águas se tornasse insuficiente para abastecer as hidrelétricas no período de seca, que vai de maio a novembro