Nelson Rodrigues foi um dos melhores dramaturgos do Brasil – e também o mais econômico em elogios em relação aos autores que admirava. Fácil deduzir, então, qual era o seu comportamento diante daqueles que o desagradavam. Entre esses “desafetos intelectuais” sempre esteve outro dramaturgo, o mais revolucionário do País na exploração do espaço cênico, na sobreposição de planos, no tempo da narrativa e no mergulho na alma do brasileiro: Oduvaldo Vianna Filho. Eu, que não sou do palco mas sim da plateia, aqui o homenageio nas quatro décadas de sua morte que se completam nessa quarta-feira 16. Qual sua dimensão no teatro nacional? Nelson Rodrigues se curvou ao comentar a peça “Rasga Coração”: “É a mais fascinante obra-prima; impossível ser mais definitivo”. Vianninha morreu de câncer no pulmão aos 38 anos. Quem assiste à série da Rede Globo “A Grande Família” lê ainda o seu nome entre os créditos – foi ele quem criou em 1974, pouco antes de morrer, o programa “Nossa Vida em Família”, que fixou estruturas da dramaturgia na nossa televisão.

As noites de domingo são ótimas para ir ao teatro, parte do público de sábado vai como programa de fim de semana a musicais importados e aplaude fora de hora; o de domingo vai a peças de verdade. Perguntei a alguns diretores, sempre aos domingos, por que não se reencena “Rasga Coração”, a mais brasileira de todas as peças na coragem da ternura (a começar pela música de Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense, agregado do senador “Coleira” da República Velha) e na coragem política de afirmar “que o novo não é necessariamente revolucionário nem o antigo é sempre reacionário” – atualíssima aula para muito contestador de rua, embora ele não tenha competência para aprender isso. A resposta de um dos diretores me foi definitiva: “Haja fôlego emocional”. A peça cobre 40 anos da história política do Brasil a partir de Getúlio Vargas no poder com a revolução de 1930. Dá-se numa multiplicidade de planos, mostrando a repetição das angústias humanas, familiares e políticas, a cada geração, e revelando que os conflitos não ocorrem entre tais gerações, mas se instalam no interior de cada uma delas. Boa parte da esquerda que já seguiu a bobagem marxista de que “a história só se repete enquanto farsa” execrou então Vianninha porque ele mostrou que a história se repete, e muito, como verdade sociológica.

Houve quem o criticasse alegando que ele congelara a esperança. Nada disso, a peça dá a saída abrangendo o psiquismo de cada um e o psiquismo social: “Não faça do seu medo de viver um espetáculo de coragem”. É um convite para as pessoas crescerem enquanto cidadãs. Para Vianninha o grande revolucionário desse Brasil, que ainda se fará socialmente mais justo, é o “trabalhador brasileiro”, “lutador e herói anônimo” que sai do emprego, bebe uma no botequim para relaxar, se aperta na condução lotada e vai para casa ao encontro de mulher e filho, com “seus “dramas e seus sonhos” – não, os grandes revolucionários não são os profissionais dos palanques nem dos partidos políticos. Nenhum dramaturgo cresceu tão largo e profundo. Cresceu na ternura: “Se tu queres ver a imensidão de céu e mar/refletindo a prismatização da luz solar/Rasga o coração/vem te debruçar/sobre a vastidão do meu penar”. E na política: “olhar nos olhos da tragédia é dominá-la”. Vianninha estava morrendo quando alguém lhe balbuciou no ouvido que a peça não fora censurada pela ditadura militar (mentira analgésica de amigo para que ele partisse feliz). Liberada em 1979, nesse mesmo ano, ainda sob o regime de exceção, estreou no Teatro Guaíra, em Curitiba. Na primeira noite foram 28 minutos de aplausos ininterruptos; na segunda, quase uma hora.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ