No capítulo referente ao ano de 1945 do livro Meu século (Record, 332 págs., R$ 60), de Günter Grass, o narrador dispara: “O que quer dizer isso: paz? Para gente como nós, a guerra nunca terminou”. De fato, nesta estranha retrospectiva do século XX realizada pelo mais polêmico e importante escritor alemão contemporâneo – Prêmio Nobel de 1999 –, a guerra está sempre presente, de forma explícita ou velada. E, como vem fazendo desde que lançou O tambor, em 1959, Grass não hesita em pôr o dedo nas feridas da alma alemã.
São 100 textos curtos, um para cada ano do século, e cada qual com um narrador diferente. Há soldados, trabalhadores, desempregados, burocratas, mulheres jovens e velhas, que dão seus testemunhos imaginários sobre acontecimentos banais ou importantes. O primeiro narrador é um soldado que participa da Rebelião dos Boxers, na China, em 1900. A última é a própria mãe do escritor: “O menino já tem mais de 70 anos e tornou-se bastante conhecido; mas não sabe parar com suas histórias.” Foi esta a maneira que Grass encontrou para construir um painel revelador e abrangente sobre as conquistas e as misérias da história recente, tal como elas foram vividas e sentidas pelo povo alemão. É uma sinfonia de vozes, que, confrontadas e sobrepostas, constituem uma espécie de autobiografia do século XX. Embora aparentemente trivial em seus detalhes, o resultado é bem maior do que a soma de suas partes.

Num grande mosaico de esperanças e frustrações prevalece o pessimismo e a ironia melancólica, não sem razão. Nascido em Dantzig em 1927, Grass nunca foi um intelectual à margem da história. E a história do século XX, desnecessário dizer, foi pesada para os alemães, artífices inconscientes de suas próprias tragédias. Convocado em 1944 para lutar na Segunda Guerra Mundial, Grass foi logo ferido e capturado por soldados americanos. Libertado em 1946, trabalhou como agricultor e operário numa mina de potássio. Portanto, antes de começar a se dedicar seriamente à literatura – e também ao desenho e à escultura –, no final dos anos 50, conheceu bem a verdadeira Alemanha em seu doloroso processo de reconstrução.
Deliberadamente, Grass atribui à maioria de seus narradores uma miopia histórica, uma incapacidade de enxergar e interpretar os acontecimentos além de seus efeitos imediatos e pessoais. É assim que o fotógrafo que registrou o massacre do Gueto de Varsóvia se limita a lamentar não ter recebido direitos autorais por suas fotografias; que o guarda do campo de concentração de Dachau se preocupa com picuinhas burocráticas; e que os jornalistas reunidos para debater a Segunda Guerra comentam as oportunidades perdidas pela Alemanha, como se estivessem falando de um jogo de futebol.
O futebol, aliás, está presente no capítulo referente a 1954, ano no qual a Alemanha ganhou a Copa do Mundo ao derrotar a Hungria. Neste sentido, Grass é um legítimo sucessor de Thomas Mann, o maior escritor alemão do século, que sempre criticou o cinismo e a autocomplacência de seu povo, e sua dificuldade de assumir suas culpas. Como Mann, Günter Grass participou ativamente da política alemã nos anos 60, para defender a democracia e evitar que justamente se repetissem os erros e omissões cometidos pelos intelectuais durante a República de Weimar. Naturalmente, quanto maior for o conhecimento do leitor sobre a história e a cultura alemãs, mais proveitosa será a leitura dessa obra caleidoscópica de Günter Grass, um autor difícil mas necessário.