A sinfonia Eroica, de Ludwig van Bethoveen, começou a tocar nas emissoras de Damasco já na manhãzinha de sábado 10. Para aqueles familiarizados com a coreografia dos simbolismos das ditaduras, este não poderia ser um bom sinal. Pouco depois das oito horas, pela praça Umayyad – epicentro de manifestações e festividades na capital síria – ecoavam os cânticos fúnebres muezeins vindos das mesquitas. A esta altura já não havia mais dúvidas, só faltava o anúncio oficial que chegaria logo em seguida: “O Leão de Damasco está morto.” Hafez al-Assad, ditador sírio que por três décadas comandou com mão de ferro esta nação de 16 milhões de pessoas, morrera aos 69 anos. Deixou como herança um sucessor inexperiente – seu filho Bashar Assad, 34 anos, uma economia estagnada, um regime insular e sérias dúvidas sobre um acordo de paz com Israel, que vinha sendo antecipado com certo otimismo pelo resto do mundo. Mas nas ruas de seu país, o povo chorava, rasgava roupas e se espancava fanaticamente, como se houvesse perdido o pai.
O clima de velório não demorou a chegar a Jerusalém e a Washington. Há oito meses, as indicações dadas pelo taciturno ditador sírio – um homem econômico nos gestos e irredutível em suas posições – pareciam indicar este como o melhor momento para um acordo que trouxesse uma normalização das relações entre os países da região. O presidente Bill Clinton estava numa cerimônia no Carleton College, em Mineapolis, quando recebeu a notícia da morte de Assad. Naquele instante ele seria flagrado pelas objetivas das câmeras com a expressão dos que engolem um remédio amargo. Clinton esperava terminar seu mandato deixando como legado a paz sírio-israelense, alinhavada sob seu comando. O primeiro-ministro de Israel, Ehud Barak, também reconheceria imediatamente que os movimentos estariam congelados por muito tempo no tabuleiro de xadrez do Oriente Médio. “Bashar não tem interesse na paz por hora. Sua maior preocupação agora é consolidar o poder”, disse ao se referir ao sucessor sírio.

Mas Bachar Assad – um oftalmologista educado em Londres –, estava com o pensamento em outras questões. Um dia após o majoritário Baath (Partido Socialista Árabe) ter pavimentado seu caminho em direção ao trono, o filho herdeiro já recebia ameaças e desafios de seu tio Rifaat, exilado em Londres, que queria o lugar de Assad. Afinal, o herdeiro não completara 40 anos, idade mínima para ser presidente. Enquanto enxugavam as lágrimas com uma mão, com a outra os parlamentares aprovavam uma lei baixando a idade mínima obrigatória dos presidentes para 34 anos. Isso viabilizou a ascensão de Bachar Assad e selou definitivamente a sorte de Rifaat. O ex-coronel Rifaat começou a cair em desgraça logo depois de ter comandado o massacre, a mando do irmão, de dez mil sunitas fundamentalistas na cidade de Hama em 1982. No ano seguinte, Assad sofreu um infarto e ficou dias em coma. Enquanto isto, os tanques de Rifaat manobravam nas ruas, numa tentativa de golpe. O irmão não imaginava que o Leão de Damasco fosse ter força para superar as duas crises, de saúde e política.

Vitórias e fracassos – No campo doméstico, desde que comandou o golpe de Estado contra o presidente Atassi, em novembro de 1970, Hafez Assad segurou firme as rédeas do poder. Isso com a prestimosa ajuda de nada menos do que 15 aparatos de segurança diferentes. Mas nos campos de batalha internacionais, como ex-comandante da Força Aérea e ex-ministro da Defesa, o Leão não teve tanto sucesso. Em 1967, ele comandava as tropas sírias que tomaram uma surra dos israelenses na Guerra dos Seis Dias, cujo resultado foi a perda das colinas do Golã. Já em 1973, Assad foi aliado do Egito no ataque a Israel no dia do Yom Kippur. Com os acordos de paz feitos posteriormente entre Egito e Israel, restou ao Leão o isolamento.
Na complicada coreografia do funeral de Assad, notou-se que as atenções mais calorosas do novo presidente foram dadas a Mohammed Khatami, presidente do Irã, e aos representantes da Arábia Saudita. Do primeiro, ele deseja a manutenção de uma aliança estratégica bem azeitada por seu pai. Dos segundos espera o financiamento dos petrodólares para a modernização da economia. Restou à secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright, ficar aos cuidados do chanceler Farouk al-Sharaa. O simbolismo destas preferências é tido como exemplar do que se espera de Bashar. Enquanto ele não tomar conta de vez do Palácio al-Shaab, sede do governo sírio, a paz terá de esperar.


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