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Os termômetros registravam 15 graus e chovia fino em Porto Alegre quando o vôo JJ 3054 da TAM decolou do Aeroporto Salgado Filho para São Paulo às 17h16 da terça-feira 17 de julho. Minutos antes, na sala de embarque, Luiz Baruffaldi, 54 anos, antigo funcionário da Gerdau e residente em Porto Alegre, telefonou para a filha: – Daqui a pouco estou aí, estou chegando já, já – disse. – Ai, pai, não comprei nada do que você gosta de comer. Não deu tempo de ir no supermercado – comentou Bianca, 21 anos, estudante em São Paulo.

– Filha, não te preocupa com isso, vamos jantar fora. Na cabine de comando, o relógio marcava 18h48 quando os pilotos Henrique Stephanini di Sacco e Kleyber Lima receberam autorização da torre de controle do Aeroporto de Congonhas para pousar. Chovia fino, mas insistentemente, em São Paulo. Eles foram avisados pelos controladores de vôo de que a pista em Congonhas estava escorregadia. No dia anterior, um avião da Pantanal havia derrapado, por isso as condições de pouso eram motivo de conversa recorrente entre a torre e os pilotos. Quarenta segundos antes de tocar o solo, começaram os procedimentos de aterrissagem e as luzes da cabine se apagaram. O Airbus A320 prefixo PR-MBK desceu no ponto correto, a 300 metros da cabeceira da pista, e a uma velocidade normal, próxima de 185 km/h.

 

 

 

 

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"Vira, vira, vira!", foram as últimas palavras ouvidas na cabine de comando. Às 18h52, um forte barulho de motor, seguido de um estrondo e um cogumelo gigante de fogo tomaram conta da avenida Washington Luiz, uma das mais movimentadas de São Paulo. O Airbus de 62,7 toneladas havia se chocado a 166,6 km/h contra o prédio da TAM Express, onde entre 50 e 60 funcionários davam expediente naquele horário e um número ainda incerto de prestadores de serviço se encontravam no local.

A aeronave cruzou em poucos segundos a pista, virou à esquerda, sobrevoou os carros e invadiu o segundo andar do edifício. No trajeto, bateu numa mureta do aeroporto e no teto do carro da editora de texto Mara Regina Garcia. "Nem sei que parte do avião tocou no meu carro", disse ela, que ficou com a cabeça sangrando, mas conseguiu chegar em casa.

Na hora, o trânsito parou na Washington Luís. O taxista Milton Oliveira Santos, que faz ponto em Congonhas há 13 anos, comia um cachorro-quente a 15 metros do local. "Aí vi aquele monstro vindo da pista", conta ele. A explosão de janelas do edifício do terminal de cargas da TAM fez os estilhaços voarem para cima do carro de Milton. Com o choque, tremeu a parede da casa onde fica a empresa de fibra óptica de Aníbal Reichenbach, uma casa distante três imóveis do prédio da TAM, que foi tomado por labaredas de fogo. Pessoas em desespero corriam e gritavam. "Saímos na hora", diz Aníbal. Com a ajuda do filho e de um funcionário, ele socorreu dez vítimas do maior acidente aéreo da América Latina

 

 

 

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A tragédia levou as vidas de todos os 187 passageiros (o último foi confirmado na sexta-feira 20) do vôo 3054. Dois antes, o presidente da TAM, Marco Antonio Bologna, disse que o avião decolou lotado com 185 pessoas a bordo e um bebê de colo. Aonde estava este 187º passageiro? Até o fechamento desta edição, pelo menos dez pessoas em terra (sete funcionários da TAM e três terceirizados) – oito dessas vítimas ainda estão desaparecidas. O número total de mortos deve crescer até o término do trabalho de resgate.

O acidente poderia ter proporções ainda maiores. Especialistas que tiveram acesso ao local viram que parte da asa esquerda ficou a centímetros dos bicos injetores de um tanque de combustível do posto. Se o choque tivesse ocorrido, haveria uma explosão que poderia atingir dois quarteirões, abrindo uma cratera e tragando casas e prédios.

Só uma investigação minuciosa dirá quais as causas do acidente. As caixaspretas seguiram para análise nos Estados Unidos, mas o relatório final levará meses para ficar pronto. Os dados também deverão desvendar um mistério: qual dos dois pilotos, Kleyber Aguiar Lima, 54 anos, ou Henrique Stephanini Di Sacco, 53, estava operando a máquina na descida para Congonhas. Como ambos eram comandantes, qualquer um poderia estar sentado no assento esquerdo da cabine para fazer o pouso. Nascido em Porto Velho, Kleyber era mais experiente em aeronaves do tipo Airbus. Funcionário da TAM desde novembro de 1987, acumulava 14.744,1 horas de vôo. Primogênito de dez filhos, de família humilde, Kleyber cresceu em Fortaleza e atualmente cursava direito.

O paulistano Henrique iniciou sua carreira nos anos 80 na Transbrasil e pilotou aviões como o Boeing 767 em rotas internacionais. Com a falência da empresa, ficou desempregado e mudou de área: abriu uma empresa de distribuição de água mineral. Só voltou a voar em meados de 2006, na pequena Passaredo, em Ribeirão Preto. Em 9 de janeiro foi admitido na TAM e no mês passado se tornou apto a pilotar o Airbus A320. Tinha 14.486 horas de vôo. Casado, Henrique deixou mulher e três filhos – o mais velho é piloto.

Até agora, uma das poucas certezas dos investigadores é que o avião cruzou em alta velocidade a pista principal de Congonhas, que estava molhada, embora estivesse liberada para pouso pela Infraero. Esta pista passou por uma reforma de 45 dias encerrada no dia 30 de junho, a um custo de R$ 20 milhões e estava em uso apesar de faltar o grooving – as ranhuras que evitam empoçamento da água da chuva e conferem maior aderência aos pneus na hora da aterrissagem. Para o grooving ser colocado, o novo pavimento precisa estar assentado e isso leva cerca de 45 dias. Após o acidente, a Infraero decidiu antecipar a obra para o próximo dia 25.

 

 

 

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Várias perguntas permanecem sem resposta: por que o piloto não desacelerou? Ou por que ele reduziu a velocidade e acelerou de novo? Ele tentou arremeter (levantar vôo de novo)? O avião aquaplanou (deslizando sobre uma camada de água)? O sistema de frenagem funcionou? Houve alguma pane no motor? As imagens divulgadas pela Infraero do Airbus correndo na pista mostram um ponto de luz no avião antes do choque fatal. "Pode ser um superaquecimento do freio", diz o brigadeiro Jorge Kersul Filho, chefe do Centro Nacional de Prevenção de Acidentes. "Não há relato de fogo no pneu ou na turbina."

Inicialmente, a TAM procurou afastar qualquer possibilidade de falhas mecânicas no Airbus A320, que tinha 26.320 horas de vôo. "Não há o registro de nenhum problema com essa aeronave", afirmou o presidente da empresa Marco Antonio Bologna na quarta-feira 18. A última revisão do avião, fabricado em 1998, foi feita no dia 29 de junho, apenas 18 dias antes do acidente. No dia seguinte à tragédia, entretanto, o vice-presidente técnico da empresa, Ruy Amparo, admitiu que, no sábado 14, o reverso (equipamento que auxilia na frenagem) direito da aeronave apresentou um vazamento de óleo no sistema hidráulico e a companhia decidiu travá-lo, como prevê o manual. "Esse avião pode operar até sem os dois reversos sem a pista estar muito contaminada", diz ele. Pista contaminada, de acordo com Amparo, é chuva forte. Segundo ele, o manual dá um prazo de dez dias para a checagem desse tipo de problema.

 

 

 

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Para Ricardo Chilelli, engenheiro aeronáutico e consultor em segurança de vôo, uma combinação de fatores pode ter desenhado o cenário desta tragédia: ausência do reverso, aeronave pesada, pista inadequada e demora na decisão de arremeter. O professor James Watrhouse, da Engenharia aeronáutica da USP, não descarta a possiblidade de falha mecânica. Gianfranco Beting, especialista em aviação há 30 anos, aponta a raiz do problema. "O erro começou quando a pista sem grooving para auxiliar na desaceleração foi liberada para pouso e decolagem com chuva", diz ele. "A pista não estava pronta para receber pouso sob chuva." Ele acredita que o avião aquaplanou e a aeronave deslizou como se estivesse sobre um sabonete. "A aquaplanagem pode enganar o sistema de frenagem automático, que não recebe a informação correta de que a roda está girando sem contato com o asfalto. Aí, os três ou quatro segundos que essa leitura demora são suficientes para fazer uma tragédia dessas."

Às 17h04, o vôo 1697 da Gol informou à torre que a pista principal estava escorregadia. Três minutos depois ela foi fechada para a medição das condições do solo. Os vôos foram retomados às 17h30 e até as 18h30 ocorreram 40 operações de pousos e decolagens. "Não houve queixa de nenhuma aeronave nesse período", afirmou o coronel Carlos Minelli de Sá, do Serviço Regional de Proteção ao Vôo. Na hora do acidente, o índice pluviométrico era de 0,6 milímetros, considerada leve, segundo a Aeronáutica.

Ainda que o acidente do vôo 5034 tenha sido uma fatalidade, é inegável que ele ocorreu num ambiente de descaso e incompetência do poder público. Em menos de um ano, o Brasil sofreu os dois maiores desastres aéreos de sua história. Ocorreram em situações distintas – o avião da Gol colidiu com um jato Legacy em pleno ar sobre a Floresta Amazônica -, mas com o mesmo fim trágico: a perda de dezenas de vidas humanas. Neste período, os brasileiros descobriram que conviviam com um sistema de controle de vôo ineficiente e sobrecarregado e assistiram, impotentes, ao jogo de empurra das autoridades diante do caos aéreo. O exemplo maior é a situação do Aeroporto de Congonhas, o mais movimentado do País, que tem sido operado no limite da irresponsabilidade. Lá, foram privilegiadas obras cosméticas em vez da segurança. O cúmulo do escárnio ficou por conta da ministra do Turismo, Marta "relaxa e goza" Suplicy, diante do transtorno que se transformou uma viagem de avião neste país. Por isso, não é exagero dizer que a aliança da negligência com a imprudência resultaram numa tragédia que é tanto uma fatalidade quanto um crime.

As cenas que se seguiram ao impacto da aeronave contra o prédio repetem o horror do 11 de setembro. O barulho das sirenes do Corpo de Bombeiros e das ambulâncias revezavam- se com os estampidos das labaredas que consumiam o edifício. No local, o ar era denso e o cheiro da fumaça preta se misturava ao odor dos corpos carbonizados. Os bombeiros tentavam isolar a área e a todo momento repetiam que era iminente o perigo de explosão do posto Shell – vizinho ao prédio da TAM -, parcialmente destruído pelo avião. As rajadas de vento da noite fria e chuvosa alimentavam o fogo que teimava em resistir aos jatos de água e espuma do Corpo de Bombeiros. Ali em frente, um relógio de rua marcava 14ºC, mas quem chegava parecia estar à beira do inferno.

 

Funcionários da TAM Express fugiam para o parapeito numa tentativa de escapar das chamas. "Não se jogue, pelo amor de Deus. Use o extintor,

 

 

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mas não se jogue", gritava uma pessoa no meio da multidão ao ver uma mulher desesperada tentar pular do edifício. Pessoas machucadas pediam ajuda para cuidar dos ferimentos. Outras, em estado de choque absoluto, não conseguiam se mover. A pressão gerada pela explosão do Airbus deixou os moradores da região com zunido no ouvido durante horas.

Em pleno rush, o trânsito na avenida foi interrompido. Pouco antes das 20h, um cadáver foi colocado ao lado de uma viatura do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência. Envolvido em um material isolante, era a primeira personificação da tragédia. Ao lado da vítima resgatada, duas grandes lonas foram estendidas para receber os corpos e uma seqüência de macas estava à disposição para remover os feridos. No entanto, elas permaneciam intocáveis, enquanto os sacos eram requisitados a todo instante. Havia 120 ambulâncias posicionadas para levar feridos para os hospitais. Logo, a energia elétrica da região foi cortada. Sobraram focos de luz esparsos gerados pelas equipes de reportagem, holofotes da defesa civil, faróis dos carros e pelo fogo que demorou oito horas para ser controlado. O Airbus foi quase integralmente destruído, sobrou a cauda.

A imagem que fica é a do amanhecer no local do acidente um dia depois da tragédia: das três bandeiras que tremulavam em cima do prédio, a do Brasil foi inteiramente consumida, a de São Paulo estava parcialmente queimada e a da TAM virou um pano negro, um luto que os brasileiros vão guardar para sempre.

 

 

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A LONGA BATALHA PELAS INDENIZAÇÕES

O seguro firmado entre a TAM e o Unibanco AIG deverá pagar cerca de R$ 372 milhões a familiares das vítimas do acidente do vôo JJ 3054. Receber valores no Brasil, entretanto, é um processo demorado. As famílias dos 154 passageiros do vôo 1907 da Gol, que se chocou com o jato Legacy em 2006, até agora receberam apenas o seguro obrigatório de R$ 14 mil. Foram concedidas a algumas tutelas antecipadas – remuneração mensal no valor de dois terços da renda da vítima. Apesar de a lei determinar que a empresa aérea indenize os passageiros mesmo sem ter tido culpa no acidente, a Gol propôs acordos, não considerados justos pelos parentes. Cerca de 100 famílias entraram com ação nos Estados Unidos contra a Legacy e ExcelAir e os pilotos Joseph Lepore e Jan Paul Paladino. "Lá fora, o processo está na fase final e as indenizações deverão ser pagas daqui a seis meses", diz Angelita Marchi, presidente da Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Vôo Gol 1907.

Onze anos depois do acidente do Fokker-100 da TAM, que caiu nas redondezas de Congonhas e matou 99 passageiros, ainda há indenizações não pagas. "Cerca de 20 pessoas ainda não receberam", diz o advogado Luiz Roberto Sampaio, especialista em responsabilidade civil e direito aeronáutico. No Brasil, houve indenizações de R$ 800 mil. Quem fez valer seus direitos nos Estados Unidos recebeu até R$ 2,8 milhões, pois o fabricante do reverso que falhou era americano.

 

 

 

 

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A advogada Sandra Assali, 50 anos, presidente da Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos, perdeu o marido, o cardiologista José Rahal Abu Assali, no acidente. Foi difícil, mas ela conseguiu reconstruir a vida. Mãe de Samir (à época com sete anos) e Rafaela (com quatro), Sandra deixou uma microempresa para cuidar dos filhos após a tragédia. E procurou uma terapia para os três lidarem melhor com a perda. "Samir já entendia o que era a morte. Foi pego em cheio. Rafaela percebeu que o pai não voltava mais de dois anos depois", conta a mãe. Samir hoje sonha em ser diplomata e acaba de passar no vestibular para relações internacionais. Rafaela cursa o ensino médio e ainda guarda um vestido que usava para passear com o pai.