"Tem que cassar”, decretou a delegada aposentada Joana D’Arc, 50 anos, batendo o controle remoto contra o encosto da poltrona e assumindo as vezes de juíza no tribunal doméstico em que se transformou sua sala de 15 metros quadrados. “Cassa”, “cassa”, “cassa”, entoou sua filha, a estudante secundarista Marina, 18 anos. Entre copos de refrigerante e espetinhos de salsicha, a família Franco não desgrudou os olhos da TV Senado durante a maratona de sete horas – das 14h43 às 21h45 – que parou o País na quinta-feira 3. Joana, seus filhos Romildo, Raquel, Marina e Paulo, a prima Hérika, a “vó” Narcisa e dona Custódia, a diarista, se reuniram para assistir no apartamento da família a um programa que acontecia a apenas oito quilômetros dali, no Congresso Nacional. No plenário da Comissão de Ética do Senado, os senadores Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) e José Roberto Arruda (sem partido-DF) e a ex-diretora do Prodasen Regina Célia Borges protagonizaram um espetáculo inédito, embaraçoso e, principalmente, necessário: pela primeira vez na história, dois senadores e uma funcionária se enfrentaram em uma acareação – prática mais afeita às delegacias de polícia. “Eu fiquei constrangida pelo ACM. Se pudesse, pedia a ele: por favor, renuncie, volte pra Bahia, vá descansar debaixo de um coqueiro”, apelou Joana, uma fanática por transmissões de CPIs. Como no resto dos lares brasileiros, encerrada a sessão, ninguém mais tinha dúvida da culpa de ACM e Arruda. “Em outro país, era todo mundo no paredão“, arriscou Narcisa, 83 anos, matriarca da família. Repreendida pela filha, “vó” Narcisa reformulou seu voto: “Tá, então só cassa.”

A acareação tripla serviu para mostrar o que até o sofá da sala dos Franco já sabia: que Antônio Carlos, então presidente do Senado, combinou com Arruda, líder do governo, como violar o painel eletrônico do Senado para conseguir a lista dos votos na cassação do mandato de Luiz Estevão, em junho do ano passado. E que Arruda, depois de mandar Regina executar o serviço sujo, entregou a lista a ACM. A acareação não funcionou como um detector de mentiras, como muitos imaginavam. “Essa gente mente com a melhor cara do mundo”, ensina Joana, com a experiência de quem, como escrivã da polícia por duas décadas, fez dezenas de acareações. Adestrados por advogados, ACM e Arruda agiram como bons profissionais: deram um show de dissimulações e contradições para sustentar suas mais recentes versões. Coube mais uma vez a Regina Borges desmontar a armação. “Arruda me pediu claramente a emissão da lista de como votariam os senadores no dia seguinte. Abriu a conversa dizendo que estava vindo em nome do senador Antônio Carlos Magalhães”, contou a ex-diretora, desmontando a frágil defesa de Arruda, que jura só ter feito uma consulta técnica para testar a segurança do sistema de votação.

ACM se defendeu, incorporando novamente o papel de cego no meio de um tiroteio. Não mandou fazer nada. Diz que ficou surpreso quando recebeu a lista de Arruda e destruiu-a pessoalmente, sem testemunhas. “Não dei nenhuma autorização nem ordem ao senador Arruda para tratar com dona Regina sobre qualquer assunto”, desconversou o senador baiano, derrapando em contradições. Ao comentar seu telefonema para Regina, depois de receber a lista, ACM negou que tenha “admoestado” a funcionária por ter executado uma fraude no painel – como garantira em seu depoimento anterior. “Se nem sequer a admoestou, é um indício, senão uma prova, de que vossa excelência agiu mesmo em concordância com o senador Arruda”, afirmou Jefferson Peres (PDT-AM). Aplausos da família Franco. “Que cara mais cínico”, corou Paulo Augusto, 17 anos, entre idas e vindas ao computador para participar de enquetes e discussões na internet sobre a fraude.
 

Na casa dos Franco, Arruda também não convenceu. Concentrando suas baterias em Regina, o senador de Brasília se enrolou ao falar dos telefonemas que recebeu da ex-diretora do Prodasen antes e depois do servicinho no painel. No primeiro deles, na manhã do dia da cassação, Arruda ouviu Regina dizer que tinha alterado o painel. “Telefonei e disse (a Arruda) que a tarefa tinha sido executada na noite (anterior)”, contou Regina. Arruda tentou reagir. “Independentemente da ligação, todos os procedimentos que a dra. Regina tomou já haviam sido feitos. Não tinha mais jeito.” Regina, então, desmontou a desculpa. “Tinha perfeitamente jeito, sim. Naquele momento, tudo poderia ter sido abortado, porque a votação não havia acontecido ainda. Voltaríamos ao programa original e não haveria lista.” Nocaute. Arruda acabava de perder seu último aliado na casa dos Franco.

A empregada da família, Custódia dos Santos, 47 anos, começou a acareação torcendo por Arruda. “Ele é um homem de bem”, opinava. Quando Arruda começou a bater em Regina, Custódia entregou os pontos: “Não dá pra saber a hora em que esse homem fala mentira ou verdade.” A ala mais jovem da família Franco saiu decepcionada pela falta de “pegas” no depoimento. “Achei que o pau fosse quebrar”, esperava Romildo, 21 anos, um “simpatizante do PT”. “Foi chocho”, reclamou Marina. Os dois só se empolgaram quando a senadora Emília Fernandes (PT-RS) chamou ACM de “autoritário e prepotente”. ACM e Arruda encerraram a acareação como entraram: sem credibilidade. O senador baiano comparou-se a Rui Barbosa, segundo ele também acusado por adversários de “procedimentos desonestos”. Arruda reinventou a teoria da dosimetria. “Não se pode dar a uma falha menor, como essa, o mesmo peso de um processo de cassação por corrupção”, comparou o ex-líder do governo, que, no vácuo de Luiz Estevão, poderá ser o segundo senador de Brasília, em menos de um ano, a ser cassado. No final, todos viram a lista, mas ninguém assumiu ter dado a ordem para produzi-la. “Se não tomarmos cuidado, vamos sair daqui pensando que a senhora que acendeu o forno crematório foi a responsável pelo Holocausto”, ironizou Roberto Freire (PPS-PE). Quase formada em história, Raquel, 25 anos, acha que o Senado tem uma chance rara de se redimir. “Ainda acredito nos políticos. Um pouquinho”, diz. Por via das dúvidas, sua mãe, Joana, já anunciou mudanças no cardápio para os próximos dias: “Até eles serem cassados, não faço mais pizza nesta casa.”

Rir é o melhor remédio

Clarisse Meireles

Enquanto a imprensa tenta adotar um tom sério na cobertura da crise gerada pela violação do painel do Congresso, a turma do Casseta & planeta faz a festa. Há duas semanas, o festival de mentiras que assolam o Senado, manancial de ótimas piadas e personagens prontos para ir ao ar, tornou-se o assunto favorito de Bussunda, Claudio Manuel, Hubert, Beto Silva, Reinaldo, Hélio de La Peña e Marcelo Madureira. O Plantão Casseta & Planeta Urgente aproveita a liberdade com que sempre cobre os assuntos do noticiário nacional e transforma a crise ética em crise patética. E, para surpresa de muitos, ao contrário da cantora Sandy, que foi poupada num programa recente, o cacique baiano Antônio Carlos Magalhães, amigo fraterno de Roberto Marinho, entrou no topo para a enorme lista dos alvos dos humoristas. Entre seus novos apelidos, ACM já recebeu os nada lisonjeiros Antônio Carlos Mandalhães e Antônio Carlos Fraudalhães. “Sou obrigado a reconhecer, cometi irregularidades, fraudei. Eu faltei com a verdade, mas foi apenas para preservar a péssima imagem desta Casa”, disse Bussunda, caracterizado de ACM. O senador José Roberto Arruda também mereceu atenção especial dos cassetas. Interpretado por Hubert, Arruda foi mostrado diversas vezes chorando como um bebê. E é anunciado como o mais novo professor de teatro da praça. “Com o método sensacional do Professor Arruda você vai se transformar num dos maiores atores do Brasil, capaz de comover platéias insensíveis e conferir dramaticidade aos textos mais ridículos.” Enquanto as cassações não vêm, rir talvez seja mesmo o melhor remédio. Piada é o que não vai faltar.