A cassação dos mandatos dos senadores Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) e José Roberto Arruda (sem partido-DF) está nas mãos da opinião pública. Uma articulação das cúpulas do PMDB, do PSDB e do PFL, aliada ao corporativismo até de parlamentares de oposição, tenta transformar em pizza o julgamento dos acusados de violação do painel eletrônico do Senado. O senador Roberto Saturnino Braga (PSB-RJ) saiu da acareação entre Arruda, ACM e a ex-diretora-geral do Serviço de Processamento de Dados do Senado (Prodasen) Regina Célia Borges, na noite da quinta-feira 3, decidido a propor no relatório a cassação de ACM e Arruda. Ele se mostrava também inarredável na disposição de apresentar seu parecer ao Conselho de Ética na próxima quinta-feira. Na manhã do dia seguinte – alegando preocupação com as notícias de que, entre as manobras de ACM, estaria uma tentativa de afastá-lo da relatoria –, resolveu adiar a entrega de seu parecer por uma semana. A protelação atende aos carlistas ainda na ilusão de que ganhar tempo ajuda a reduzir a forte pressão popular pela cassação da dupla de mandantes da fraude. Nas negociações com os principais dirigentes dos partidos governistas, especialmente com o PMDB, o adiamento do julgamento é uma das reivindicações dos pefelistas. Em troca, eles manteriam a trégua nos ataques ao presidente do Senado, Jader Barbalho (PMDB-PA), por causa das acusações de envolvimento no escândalo da Sudam. Mas nada disso adiantará se a população continuar exigindo a cassação. Eles temem pagar o preço nas urnas em 2002, quando terminam os mandatos de 54 dois 81 senadores.

Assim, o cronograma para ACM e Arruda pedirem o boné e deixarem o Senado pela porta dos fundos está praticamente definido. Apesar de todos os desmentidos, a dupla vai renunciar até o final deste mês, quando a Mesa do Senado se reúne para aprovar o envio da representação do Conselho de Ética pedindo a cassação dos dois à Comissão de Constituição e Justiça. Até lá há um ritual a cumprir. Saturnino Braga apresenta até o dia 15 o relatório ao Conselho. Nele, vai dizer que ACM e Arruda quebraram o decoro parlamentar e proporá a cassação. Uma semana depois, o Conselho aprova o parecer de Saturnino. Após as sete horas da acareação, em que os dois senadores promoveram mais um festival de mentiras, a maioria dos conselheiros definiu o voto pela cassação. “Eles só conseguiram se prejudicar ainda mais. Não tenho dúvida de que houve quebra de decoro. Sou a favor de uma punição exemplar para ambos”, antecipou o senador Antero de Barros (PSDB-MT). “O vínculo está caracterizado. Não há como dissociar ACM do Arruda. Como dizia o deputado Ulysses Guimarães, é batom na cueca”, endossou o senador Cassildo Maldaner (PMDB-SC), também integrante do Conselho de Ética.
 

Avaliando que no palco do Conselho a sorte de ACM e Arruda foi selada, os dirigentes do PMDB, do PSDB e do PFL passaram a articular uma renúncia negociada. Além de preservarem os direitos políticos, receberiam uma garantia das cúpulas dos partidos governistas de que as investigações no Congresso seriam interrompidas. Isso poderia ajudá-los na defesa que terão de fazer na Justiça da acusação de mandantes da operação criminosa durante a votação que cassou Luiz Estevão. Essa foi a saída encontrada depois do fracasso de um entendimento para abrandar as penas. Por pressão da tropa de choque carlista, os senadores pefelistas Jorge Bornhausen (SC), Hugo Napoleão (PI) e Edison Lobão (MA) chegaram a negociar com os peemedebistas Jader Barbalho (PA) e Renan Calheiros (AL) e o tucano Teotônio Vilela Filho (AL) uma punição alternativa aos dois fraudadores – a suspensão temporária dos mandatos. A tentativa de acordo irritou a população e desagradou outros senadores. “Eles cometeram um crime. Pena alternativa só se for para mandar os dois fazerem trabalho comunitário na Amazônia”, reagiu Roberto Freire (PPS-PE). Quem também ajudou a torpedear o “acordão” foi o presidente Fernando Henrique Cardoso. Em conversas reservadas com lideranças partidárias, FHC manifestou contrariedade com o arranjo que estava sendo costurado. Manteve o mesmo tom em discurso no Palácio do Planalto na quarta-feira 2. “O presidente não pediu segredo. Disse que só Regina Borges falou a verdade na acareação”, declarou o diretor do jornal O Estado de S.Paulo, Ruy Mesquita, depois de assistir com FHC à transmissão da reunião do Conselho.

Pizza torrada – Com a generalizada reação negativa, os senadores que se envolveram na preparação da pizza se apressaram em desmentir as negociações em busca de um acordo. Mas as conversas de fato aconteceram. “Não telefonei para o senador Antônio Carlos, mas não posso negar que fui procurado pelo deputado José Carlos Aleluia (PFL-BA) e por Bornhausen, Lobão e Napoleão para conversas sobre qual a melhor maneira de o Senado sair de toda essa confusão”, admitiu Jader. Fora dos conchavos, Pedro Simon (PMDB-RS) deu um show à parte. Ele se notabilizou nestes seis anos de reinado de Fernando Henrique por discursos que colocaram o presidente contra a parede e o forçaram a demitir ministros como Luiz Carlos Mendonça de Barros e Clóvis Carvalho. Na noite da quinta-feira 3, Simon foi o último senador inscrito para a inquirição do trio de participantes da fraude. Não fez perguntas. Depois de demolir as histórias inacreditáveis de Arruda e ACM, Simon sentenciou que, mesmo levando em conta as versões mentirosas, a dupla é criminosa. “Arruda é culpado tendo ou não dado ordem a dona Regina. Não dá para acreditar que o senador Antônio Carlos nada sabia e, ao saber, não tomou providências. Pior: telefonou para tranquilizar dona Regina. Que, aliás, ele sabia ser a executora do delito.” Simon mostrou que os três tentaram esconder a fraude de todas as formas: “A verdade é que não saberíamos dessa história se a revista ISTOÉ não a tivesse publicado.”

Patrulha axé

Francisco Alves Filho

Mesmo diante de todas as evidências da participação de ACM no episódio da violação do painel do Senado, um grupo de baianos famosos veio a público defender o senador. A manifestação misturou personalidades como Gal Costa, Popó, Carla Perez, Dorival Caymmi, Maria Bethânia, a escritora ex-anarquista e ex-comunista Zélia Gattai e dois times de futebol, o Vitória e o Bahia. “Querem cassar a voz do maior político do Nordeste e um dos maiores do Brasil. Mas não vão conseguir porque a Bahia está unida”, disse Zélia, invocando em seus conterrâneos o sentimento de baianidade. O apoio virou polêmica. “ACM não é onipotente. Se não houver punição, atrás dele virá um trio elétrico de políticos fazendo as mesmas coisas”, critica a cantora Nana Caymmi. O escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, tradicional opositor de ACM, defende o direito de manifestação de Zélia Gattai e companhia. “Se existem brizolistas, ademaristas, os carlistas não podem ser patrulhados”, afirma. Ao contrário de Zélia, a poeta mineira Adélia Prado organizou um ato em prol da cassação em Divinópolis (MG), no sábado 5. Adélia acha que os artistas que apóiam ACM fazem “política caseira”: “Misturam afetividade com interesse público. Só porque é amigo tem que defender? A política é muito maior do que isso”, indigna-se.

Decoro é coisa séria

Denise Frossard

Dizem todas as Constituições modernas que o poder deriva do povo e em seu nome será exercido e limitado, sempre por um colegiado daqueles que, filosoficamente, deveriam ser os representantes de tal suprema entidade. Para tanto, cabe aos mandatários não só cumprir os deveres inerentes ao cargo, mas também manter conduta decorosa tanto no seio do Congresso quanto fora dele, perante a nação, entendido o decoro como a guarda da decência, da honestidade, da dignidade moral, tanto nas obras quanto nas falas. Tais padrões – que devem ser observados, de resto, por qualquer pessoa – são indispensáveis ao prestígio do mandato, à dignidade do Parlamento. Tanto assim que sua ausência significa grave infração ao Código de Ética Parlamentar, punível com a perda do mandato.

Esta é a questão que mobiliza a opinião pública e envolve dois poderosos senadores que obtiveram lista de votação secreta de seus pares, em processo político de cassação de mandato de outro senador. Nenhum dos dois nega que teve a lista proibida em suas mãos, que leu as decisões de seus pares acabando por amoitar a tal lista, sabe-se lá com que propósitos. Atropelados pelo vazamento de informação quase um ano após sua incidência e interpelados diante das câmeras de tevê, indecorosamente mentiram, tergiversaram, para, afinal, confessarem, de forma canhestra, o que já não dava mais para negar.

É bom que se frise que o que está em julgamento não é eventual questão penal, mas a questão ética, ou seja, a traição, a mentira, que, eufemisticamente, foram travestidas pelos defendentes em “razões de Estado”. Ora, uma das características da democracia é a transparência e esta é incompatível com o sigilo que a tese levantada encerra. Convém lembrar: essa tese foi usada pelos magistrados franceses colaboradores dos nazistas na Segunda Guerra Mundial.

No tribunal ético – que é um foro político –, os dois senadores vêm demonstrando a destreza de um rábula, desviando com maestria o foco para questões que interessam a um tribunal penal, mas que são dissociadas do tribunal ético. Fazem isso levantando teses jurídicas que interessam a outra esfera, a do tribunal penal, se e quando forem perante ele chamados. A mentira e a traição é que estão sob julgamento no tribunal ético, estas, aliás, confessadas.

A decisão deste tribunal (ético) poderá ser – ou não – a pretendida e até então abafada resposta daqueles que pregam a dignidade, a seriedade e o decoro como o conteúdo inafastável do comportamento individual na interação coletiva, diante da força do exemplo e do precedente, numa resposta à altura da tão propalada impunidade.

Este é um convite à reflexão, com as coisas nos seus devidos lugares!

* Denise Frossard é advogada, juíza de direito aposentada, fundadora e membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil, braço brasileiro da Transparency International, que visa o estudo e o combate à corrupção.