Parece cada dia mais claro o final da novela em que se transformou a crise energética brasileira: tem tudo para ser um choque daqueles no bolso do consumidor. Segundo a proposta do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que será analisada em 8 de maio pelo Conselho Nacional de Política Energética, será implantado um sistema de cotas, baseado no consumo do mesmo mês do ano passado. Avalia-se que, dado o nível dos reservatórios no final de abril – 32% da capacidade, contra 60% há um ano e 70% há dois anos –, será necessário cortar o consumo total em cerca de 20%. Para isso, o consumo residencial deverá ser reduzido em 21%, o industrial em 18%, o comercial em 20%, o rural em 10% e a administração pública em 25%.

Multa – O consumidor residencial que ultrapassar sua cota na faixa de 50 a 100 kWh mensais pagará duas vezes a tarifa sobre o excedente; na faixa de 101 a 500 kWh, cinco vezes, entre 501 a 1.000 kWh, dez vezes e, acima disso, 15 vezes. Já as pessoas jurídicas pagarão dez vezes mais por excedentes de até 10% e 15 vezes mais ao ultrapassar esse porcentual. Essa multa seria dobrada no caso de reincidência e triplicada no terceiro mês.

Para quem consumiu 300 kWh em junho do ano passado, a cota para junho deste ano seria de 237 kWh. Se realmente conseguir reduzir o consumo para esse índice, pagará (na área da Eletropaulo, incluindo ICMS) R$ 43,16. Se, porém, repetir os 300 do ano passado, pagará, além da tarifa normal de R$ 58,31, uma multa de R$ 75,74 – cinco vezes o preço normal dos últimos 63 kWh. O aumento na despesa será de 130% – chegando a 390% no terceiro mês. E se consumir 345 kWh por ter comprado, digamos, um freezer nos últimos meses, pagará R$ 69,14 na conta mais R$ 129,85 de multa no primeiro mês – mais 187,8%, só para começar.

Uma casa de classe média alta com iluminação, chuveiro e um eletrodoméstico de cada tipo – incluindo lavadora e secadora de roupa, tevê, videocassete, som, ar-condicionado, computador, microondas, geladeira, freezer, liquidificador etc. – pode ter chegado a um consumo de 1.000 kWh em junho de 2000. Neste caso, a cota para junho próximo seria de 790 kWh. Se a respeitar, a conta será de R$ 176,14. Se não, pagará a tarifa normal de R$ 226,64 mais R$ 504,98 de multa – acréscimo de 122,8%.

Injustiça – O esquema é, sem dúvida, um forte incentivo a economizar energia, mas embute uma série de injustiças. Desde 1995, quando começaram as privatizações do setor elétrico, até abril de 2001, os consumidores residenciais – que representam apenas 22% do consumo total – tiveram, em média, reajustes de 108% nas tarifas de energia (321% para os de renda mais baixa), enquanto a indústria teve reajuste de apenas 3% e o comércio de 27%, segundo o Instituto de Defesa dos Direitos do Consumidor (Idec). Com a difusão dos eletrodomésticos, o consumo das residências tem crescido, mas certamente a culpa da crise não é delas, nem da natureza. Todas as análises, inclusive as do governo, concordam em que a causa da crise é a falta de investimentos em energia nesses seis anos de privatização.

Além disso, terá menos problemas para reduzir o consumo quem mais desperdiçava no ano passado, quem mais usava eletrodomésticos supérfluos. Para quem já era criterioso, será difícil diminuir ainda mais seus gastos sem sacrificar sua qualidade de vida. Se melhorou de vida e comprou uma geladeira está em maus lençóis: aumentou o consumo em 180 kWh, capaz de gerar uma multa de nada menos que R$ 216,42 no primeiro mês, R$ 432,84 no segundo e R$ 649,26 no terceiro. Em três meses, dá mais que o preço de uma geladeira nova de duas portas.

Aumentos – Se isso fosse tudo, as companhias de energia elétrica teriam uma redução de receitas da ordem de 20% proporcional ao racionamento. Mas a CPFL – que estima sua perda em R$ 350 milhões com seis meses de racionamento, mais R$ 10 milhões a 20 milhões para implantar o esquema – já avisou que vai pedir revisão extraordinária das tarifas. Segundo o presidente da empresa, Wilson Ferreira Júnior, as demais concessionárias vão fazer o mesmo.

O consumidor pagaria duas vezes pela falta de investimento das empresas de energia: com multas (ou a redução de consumo) e com o aumento de tarifas (e seu impacto sobre o ICMS) para compensar as perdas dessas mesmas empresas. O governo estima um aumento de 15,8%. Se depender das empresas, deverá ser de pelo menos 25%.

Talvez até mais do que duas vezes. Caso o racionamento não se mostre suficiente, as concessionárias deverão cortar a energia arbitrariamente e de surpresa, em bairros selecionados. O fator surpresa visa evitar que assaltantes se aproveitem da situação.

Outros “choques” podem vir em seguida: a situação serve como pretexto para ressuscitar a proposta de dolarização das tarifas elétricas. E para retomar o projeto de Angra III, um gasto de US$ 2,35 bilhão para gerar 1.300 megawatts que, se produzidos por usinas a gás, muito menos perigosas, custariam no máximo US$ 1 bilhão em investimentos.