Se a rotina de Cascavel, no Paraná, e Chapecó, em Santa Catarina, fosse igual à mostrada nos filmes lá produzidos, as duas cidades certamente seriam mais bizarras que Twin Peaks, a localidade do seriado televisivo saída da imaginação do cineasta americano David Lynch. Para alívio de seus habitantes, os bandidos sanguinolentos, capazes de promover chacinas intermináveis, ou pior, zumbis canibais que atacam na calada da noite não passam de divertida fantasia criada por abnegados cineastas e videomakers que têm feito de Cascavel e Chapecó espécies de pólos alternativos de cinema e vídeo. São produções baratas, mas realizadas num ritmo tão frenético quanto o desejo das populações de assistirem a filmes como Fronteira sem destino, um dos exemplos que ajudaram Cascavel a desafiar os moldes tradicionais da indústria cinematográfica. O sucesso regional, que começa a ganhar força fora de seu perímetro, deve-se aos sete anos de trabalho árduo do ator e produtor paranaense Talício Sirino, 40 anos. Graças à sua persistência, Fronteira sem destino, de 1995, ganhou horário na televisão, continua sendo disputado nas locadoras da cidade e, por comparação, conseguiu mais público local que o arrasa-bilheteria Titanic. Chapecó – e a vizinha Palmitos – domina um outro segmento não menos curioso. É lá que um animado grupo de jovens ficou conhecido por produzir vídeos artesanais, amadorísticos, mas que provocam gargalhadas apavorantes na garotada cada vez que jorros de groselha simulando sangue explodem em carnificinas praticadas por monstros, psicopatas e fantasmas vingativos.

Enquanto o resultado da turma de Chapecó é propositadamente mambembe, em Cascavel os filmes de Sirino começam a ganhar contornos mais profissionais. O diretor e ator lançou três longas-metragens de pura ação. “Eu me inspirei em John Woo”, diz ele, referindo-se ao mestre chinês dos filmes de pancadaria que assina Missão: impossível – 2. Puro exagero, porque o que se vê na tela nada mais é do que o clima aventuresco das histórias ouvidas de matadores de aluguel. Em Acerto final, por exemplo, seu primeiro longa-metragem, de 1993, há uma sequência em que o herói corre sob uma saraivada de balas. “Eram balas de verdade, pois o orçamento de R$ 10 mil não permitia gastos com tiros de festim. Achei que não ia sobrar nenhum ator, só o diretor”, brinca Sirino. Em meados de julho, Sirino dará continuidade à saga de ação lançando Conexão Brasil – seu terceiro trabalho e primeiro realizado em película – no qual aprimora um estilo trepidante de filmar. Tudo ao custo de R$ 300 mil.
Como um Chuck Norris redivivo, novamente Sirino – na vida real um faixa preta de caratê – personifica Franco, herói tipicamente brasileiro, com sobra de caráter e força, que enfrenta narcotraficantes e contrabandistas de armas a golpes de artes marciais. Sirino enche a tela com sua boa forma, concentrada em 90 quilos de músculos e 1,86m de altura. Fora dos filmes exibe a mesma disposição para divulgar suas produções e buscar parceiros. A TV Tarobá de Cascavel é uma das patrocinadoras mais constantes. “Estou aprendendo enquanto faço”, diz.

Foto: Ricardo Giraldez
Sirino ( foto acima) e os videomakers Coveiro, Baiestorf e os irmãos Zambiasi: balas verdadeiras e vísceras

Ar caseiro – A regra de aprendizado também se aplica aos jovens videomakers de Chapecó e Palmitos. Formado por quatro amigos – alguns com nomes singulares como Boni Coveiro – e uma legião de colaboradores, o grupo vem investindo em produções com um ar caseiro há mais de cinco anos. Às vezes lembram os trabalhos do americano Ed Wood, considerado o pior cineasta do mundo – tão ruim que virou cult e até ganhou uma fita em sua homenagem, com Johnny Depp no papel do diretor. Entre os primores do trash catarinense, o riso involuntário corre solto no média-metragem Eles estão chegando (1997), inspirado nas suspeitas “verdadeiras” de que Chapecó seria invadida por discos voadores, que no vídeo não passam de prosaicas tampas de panelas de alumínio. Um início mais que amador, porém determinado. Para fazer a trilha sonora ao vivo, um deles seguia a câmera carregando um aparelho de som ligado. Atualmente, a turma do terror já faz edição em computador.

Macabro – Individualmente, as produções macabras não ultrapassam os R$ 300. A distribuição e venda é feita por aficionados via Internet e pelo correio, ao preço médio de R$ 15. É um sucesso local. Dá para cobrir os custos e ainda sobra para a cerveja. Diante de investimentos tão baixos, eles dispensam os sacrifícios feitos por Sirino que chegou a vender uma casa, uma academia de caratê e até torrou o fundo de garantia da mulher só para ver seu sonho materializado nas telas. Na fase de produção de Conexão Brasil, durante seis meses ele percorreu 30 cidades do oeste paranaense, pilotando uma velha Kombi carregada com um projetor de mais de 40 quilos e dez rolos do filme Titanic, que passava nos cinemas ou em praças públicas, num acordo com a Fox Warner, a distribuidora do filme. Equipado de possantes alto-falantes, rodava os lugares repetindo incessantemente a canção-tema My heart will go on, interpretada por Celine Dion. Era o apelo romântico aos locais. Com o marketing, arrebanhou 28.200 espectadores que lhe renderam R$ 80 mil.

Foto: Ricardo Giraldez
Filmagem de Conexão Brasil: inspiração em histórias reais de matadores

Curiosamente, Sirino não bateu o próprio recorde. Fronteira sem destino teve perto de 30 mil pagantes na região de Cascavel. Com Conexão Brasil, pretende ir mais longe. “Quero atingir 100 mil espectadores só no Paraná.” Diante de uma produção mais generosa, seu poder de fogo aumentou. O personagem Franco antes usava revólveres. Agora destrói um carro com uma bazuca. Pela primeira vez também pagou cachês a praticamente todos os atores e coadjuvantes. Um luxo impensável para os videomakers de Chapecó e Palmitos, que recrutam conhecidos para trabalhar de graça. Como reconhecimento, ganham créditos inéditos. O diretor Petter Baiestorf, 25 anos, por exemplo, no média-metragem Zombio agradeceu à “zumbizada amiga”. São pessoas que querem se divertir e se submetem a mastigar vísceras de animais ou então ficar horas besuntados com uma pesada maquiagem feita de farinha de mandioca e água. “Meus filmes são para chocar, sou a favor da violência na arte, e não na rua. O problema é que eles chocaram mesmo e não deram retorno financeiro nenhum”, conta Baiestorf.

Boni coveiro – Com a intenção de manter a aura, Baiestorf veste-se apenas de preto. “Tenho aversão a cores.” Em Palmitos, onde mora, é uma figura popular. Só perde em quantidade de cartas recebidas para a cooperativa agrícola da cidade. No seu currículo, já foi assistente do diretor Ivan Cardoso, ajudou a fundar a Conspiração Trash de Chapecó, produtora que reúne os irmãos Saulo e Cristiano Popov Zambiasi, 26 e 27 anos, e Fabiano Boni, o Boni Coveiro, um ex-seguidor de Zé do Caixão, hoje desiludido com o mestre a quem chama de picareta. “Ele deveria ter morrido nos anos 80, antes da decadência”, esbraveja. Tanta raiva se justifica. Boni entrou num concurso para ser o sucessor de José Mojica Marins, gastou R$ 60 de inscrição, dinheiro, segundo ele, depositado na conta do próprio Mojica. Depois de vir duas vezes à São Paulo, percebeu que o concurso era uma fraude. Nem assim sepultou seu Boni Coveiro, personagem inspirado em Zé do Caixão. Quando vai encarná-lo, anda com uma mala de madeira na forma de caixão.