"Estava muito escuro. Tropeçávamos em corpos sem vida enquanto tentávamos alcançar as portas. Então, arranhamos as portas e batemos nas paredes do contêiner. Foi uma visita ao inferno.” A descrição, digna de um conto de horror de Edgar Allan Poe, é de um dos dois únicos sobreviventes da tragédia ocorrida na segunda-feira 19 cidade portuária de Dover, porta de entrada da Inglaterra pelo Canal da Mancha. Num contêiner de um caminhão frigorífico Mercedes proveniente de Zeebrugge, na Bélgica, em meio a uma carga de caixas de tomates amontoavam-se os corpos de 58 imigrantes chineses ilegais, entre eles quatro mulheres. Os candidatos a imigrantes morreram em decorrência de asfixia por falta de oxigênio. Num dia em que os termômetros registravam altas temperaturas (cerca de 30ºC), o refrigerador do contêiner estava desligado porque a carga (de tomates) era pequena. A Scotland Yard (polícia britânica) suspeita que a máfia chinesa Cabeças de Serpente, que atua na província chinesa de Fujian traficando mão-de-obra para a Europa, esteja por trás da operação. Até o final de semana, tinham sido detidos o motorista e o suposto proprietário do caminhão, ambos de nacionalidade holandesa.

Falando em Portugal onde participava de uma cúpula da União Européia, o premiê britânico, Tony Blair, conclamou seus pares a arregaçar as mangas para lutar contra o que chamou de “perverso comércio de seres humanos”. De fato, as máfias especializadas nesse macabro contrabando para a Europa estão se tornando cada vez mais audaciosas, mercê do crescimento da imigração ilegal. Essa nova modalidade de tráfico já movimenta algo em torno de US$ 3 bilhões por ano. O caso dos imigrantes chineses talvez seja um dos mais dramáticos. Eles pagam em média US$ 25 mil per capita – alguns chegam a pagar até US$ 60 mil – para as Cabeças de Serpente, uma das muitas Tríades, como são conhecidas as seculares e perigosíssimas gangues mafiosas chinesas que atuam na Europa e nos EUA. Na maioria, os candidatos à emigração não têm esse dinheiro e pagam as “passagens” trabalhando anos em regime de semi-escravidão em estabelecimentos controlados pelos mafiosos em vários países europeus. Em outros casos, as famílias dos que querem emigrar emprestam o dinheiro de agiotas.

Mas o que vem tornando possível o crescimento desse tipo de comércio é a política cada vez mais restritiva que os governos da União Européia vêm adotando em relação à imigração. Na opinião de especialistas, ao transformar o continente numa espécie de fortaleza contra a entrada de imigrantes em busca de trabalho, a Europa acaba incentivando o tráfico de seres humanos, além de levar água ao moinho do racismo. Uma dessas medidas foi o chamado acordo de Schengen, assinado em 1985 por sete países da UE (Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Luxemburgo e Portugal). Esse tratado permite a livre circulação de cidadãos desses países, mas ao mesmo tempo reforça as fronteiras externas contra imigrantes. “Fechar o portão aos imigrantes não vai deter as pessoas. Elas estão tão desesperadas para fugir de seus países ou melhorar de vida que acabam apelando para as quadrilhas”, diz a diretora da Comissão da ONU para Refugiados do Reino Unido, Lyndal Sachs. Segundo a Organização Internacional para Migrações (OIM), entre 300 mil e 500 mil imigrantes ilegais chegam aos países europeus todos os anos, provenientes da Ásia, da África e do antigo Leste europeu. A organização calcula ainda que hoje nada menos que entre 20 milhões e 40 milhões de pessoas estejam em situação ilegal em todo o continente.

Ao mesmo tempo, acirra-se o discurso xenófobo da direita e dos conservadores contra os imigrantes. O bufão francês Jean-Marie Le Pen já não fala mais sozinho. Tem ao seu lado figuras como o neonazista austríaco Jörg Haider – cuja coalizão chegou ao poder na Áustria – e o líder dos conservadores britânicos, William Hague, que fez da repressão aos imigrantes sua principal bandeira política. E esse discurso belicoso encontra eco nos setores mais empobrecidos da população européia. “Eu não sou racista, mas sofremos demasiado com os refugiados para me alarmar com o que ocorreu com os chineses aqui em Dover. Aqui, o governo lhes proporciona habitação, escolas e dinheiro até que consigam asilo. Os imigrantes dispõem de mais recursos que os desempregados daqui”, diz a mãe de um desempregado em Dover. Enquanto isso, a União Européia, ao mesmo tempo em que adota sanções contra a Áustria de Haider, acaba aplicando parte de seu receituário antiimigratório.