Num dos livros mais belos já escritos sobre fotografia, o semiólogo francês Roland Barthes comenta alguns trabalhos do húngaro naturalizado americano André Kertész (1894-1985), considerado um dos pais do fotojornalismo e um dos vários a elevar a foto ao posto de arte visual. Ao analisar em A câmara clara o retrato de um garoto com seu cãozinho, clicado por Kertész em 1928 na feira de animais de Saint Michel, em Paris, Barthes explica por que uma pessoa se revela tanto numa mera foto em preto-e-branco. Chega à conclusão de que a imagem do menino emociona porque, ao mirar com olhos tristes a objetiva, ele, “de fato, não olha nada; retém para dentro seu amor e seu medo”. Captar estes momentos não chega a ser exatamente uma virtuose técnica. É muito mais uma questão de sensibilidade. E Kertész era um mestre, como provam as 185 fotografias da imperdível exposição Ma France, em cartaz no Conjunto Cultural da Caixa, em São Paulo. Exibido pela primeira vez no Brasil, o acervo pertencente ao Ministério da Cultura da França é a principal atração do V mês internacional da fotografia, que este ano reúne 60 atrações sob o tema Raízes e asas.

Rubens Fernandes Jr., organizador-geral do evento, explica que as “raízes” se referem tanto a pioneiros quanto a fotógrafos preocupados com a questão da identidade. Caso dos franceses Rodolph Lindemann (c.1852 – ?), contemplado com a mostra Retratos – ampliações de postais de negros brasileiros realizados no início do século XX – e Pierre Verger (1902-1996), cuja vasta obra teve um recorte mais biográfico na seleção inédita Álbum de viagens. Esta vertente não ficou limitada a nomes do passado. O gaúcho Ricardo Barcellos, por exemplo, documentou em Loa uma cerimônia de vodu, numa impressionante sequência de cores saturadas, montada na Pinacoteca do Estado. A face “asas” do evento engloba um outro tipo de produção. Trata das experiências de manipulação da imagem a exemplo dos trabalhos dos mineiros Inês Rabelo e Eustáquio Neves. Este usa e abusa da sobreposição de negativos. Enquanto o paranaense Odires Mlászho, autor de retratos fantasmagóricos, aplica papel de seda sobre fotos antigas. São tendências que muitos qualificam como artes plásticas. “Procuramos pegar as duas pontas da fotografia, aquela mais documental e a que busca se libertar da referência direta ao mundo visível”, explica Fernandes Jr.

Sob este aspecto, Kertész pode ser colocado como símbolo do evento. Ele foi um dos primeiros artistas a usar uma câmera Leica. Notabilizou-se por explorar o cotidiano das ruas, repletas daqueles instantes banais. O húngaro soube ao mesmo tempo captar a fugacidade e o sublime, antecipando o chamado “momento decisivo” apregoado por Henri Cartier-Bresson, um dos grandes mestres da fotografia. Entre outros instantâneos, entrou para a história o flagrante que Kertész fez de um homem carregando uma mesa nas costas por uma rua vazia de Montmartre, em Paris. Ou então a cena que mostra um senhor de chapéu e engravatado atravessando uma viela enquanto ao fundo um trem se dirige em sentido oposto. Além destas imagens famosas, Ma France traz retratos de personalidades do meio artístico feitos por Kertész durante suas várias estadas na capital francesa, entre 1925 e 1936 e entre 1963 e 1984. Eram geralmente amigos, como o cineasta russo Sergei Eisenstein, o pintor bielo-russo Marc Chagall e o pintor holandês Piet Mondrian. Deste último, também retratou o ateliê e objetos de uso pessoal, como os óculos e o cachimbo em planos e volumes tal qual um verdadeiro artista plástico.

O que também credencia o húngaro como um atualíssimo pioneiro é que ele foi um dos primeiros a colocar em xeque a representação do real feita pela nova arte. Em 1933, Kertész deu início à famosa série Distorções, fotografando mulheres nuas refletidas em espelhos côncavos. O efeito obtido, que pode ser apreciado em 14 fotos da mostra, lembra telas expressionistas. Hoje, fugir do registro meramente realista virou uma tendência explorada até em trabalhos documentais como o de Ricardo Barcellos, 32 anos, na sua primeira individual. Em 1997, ao retratar um grupo de haitianos na citada cerimônia de vodu, Barcellos explorou bastante a textura da imagem para realçar o lado sobrenatural da festa. “Não queria a coisa dura do jornalismo. Como não tinha tempo para planejar nada, resolvi fazer algumas interferências estéticas.”

Realizada num cômodo de um apartamento do Harlem, em Nova York, o ritual reuniu cerca de 60 pessoas durante a noite e a madrugada. A luz era escassa e o fotógrafo só pôde usar um pequeno flash, optando por uma velocidade baixíssima de exposição. Devido à intensa movimentação das pessoas, algumas visivelmente possuídas, as 23 imagens exibem um estranho efeito de sobreposição, perfeitamente adequado ao assunto documentado. “Acho legal fotografar gente. O trabalho humanista é como o espelho. Reflete a vida das pessoas”, afirma Barcellos, repetindo o ensinamento dos grandes mestres da fotografia.