Uruguai é um país surpreendente. Durante o governo do presidente colorado José Battle y Ordonéz (1903-1907 e 1911-1915), foi estabelecido o primeiro sistema de previdência da América Latina, os serviços públicos foram nacionalizados, os servidores públicos tiveram suas aposentadorias regulamentadas e a pena de morte foi abolida. Em seu primeiro mandato, Battle ainda investiu contra a então poderosa Igreja Católica, tornando o Uruguai um país laico e até aprovando uma lei de divórcio. Um avanço democrático impensável no início do século XX, em uma região em que os direitos civis ainda engatinhavam. O Brasil, por exemplo, só aprovou o divórcio em 1977 e o Chile em 2003. Em contraposição, na esfera política, o Uruguai levou 174 anos para se livrar do bipartidarismo entre o Partido Blanco e o Partido Colorado. Na terça-feira 1º, quando o presidente Jorge Battle (sobrinho-neto de José Battle y Ordonéz) passou a faixa ao socialista Tabaré Vásquez, 65 anos, um oncologista eleito em outubro passado pela Frente Ampla com 51% dos votos, o Uruguai não apenas encerrou esse ciclo histórico como também se tornou o mais novo integrante do bloco de dirigentes de centro-esquerda da América do Sul que busca fortalecer o Mercosul.

Esses laços de ternura do novo mandatário uruguaio são evidentes com o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, o argentino Néstor Kirchner, o venezuelano Hugo Chávez e até com o cubano Fidel Castro. Apesar de Castro não ter comparecido à posse, supostamente por razões de saúde, Vásquez restabeleceu prontamente as relações diplomáticas com Cuba, rompidas em 2002 pelo antecessor Battle, aliado do governo Bush. Analistas concordam que Vásquez manterá laços privilegiados com Lula. Já com Chávez, o novo presidente assinou a “Declaración de Montevidéo”, que prevê a união do Uruguai à Venezuela, ao Brasil, à Argentina e à Bolívia no estabelecimento de uma petrolífera regional, a Petrosul, que deverá refinar e distribuir petróleo no continente. Chávez e Vásquez também acertaram a venda de petróleo venezuelano a preços mais baixos e a compra de carne uruguaia por Caracas. Com Kirchner, deu-se um importante passo nos direitos humanos: Uruguai e Argentina realizarão operações conjuntas para investigar os casos de desaparecidos na Operação Condor, cooperação das ditaduras militares do Cone Sul nas décadas de 70 e 80. Nesse particular, o Brasil também terá sua parcela, já que a Argentina pediu ao governo brasileiro a extradição do coronel da reserva uruguaio Manuel Cordero, que vive foragido em território brasileiro.

Na área econômica, tudo indica que o Uruguai de Vásquez poderá seguir os passos do Brasil de Lula, mais do que os de Kirchner. A indicação de Danilo Astori, uma espécie de Antônio Palocci uruguaio, para a Pasta da Economia, é um sintoma disso. Astori deverá seguir a política neoliberal com rigidez fiscal, taxa de câmbio flutuante e uma política monetária baseada em metas de inflação. Ele admite que será difícil convencer seus colegas de esquerda a manter o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) estabelecido em 2003. “Sem acordo, é impossível gerar mais trabalho”, disse ele. O Uruguai, antes chamado de Suíça latina, tem 40% de sua força de trabalho – 1,3 milhão de pessoas – desempregada e subempregada e cerca de 200 mil pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza.

A coalizão centro-esquerdista de Vásquez assume com maioria absoluta no Parlamento, mas a manutenção de uma política econômica ortodoxa poderá gerar conflitos com a base política no longo prazo, principalmente com os ex-guerrilheiros Tupamaros, que lutaram contra a ditadura de 1973-1985 e se tornaram o maior partido da coalizão Frente Ampla. O novo ministro da Agricultura, o popular senador José Pepe Mujica, ex-guerrilheiro que se celebrizou por uma campanha contra o uso da gravata no Parlamento, pode ser o contraponto à ortodoxia econômica. Na posse presidencial, El Pepe, 69 anos – dez deles passados no cárcere –, afirmou que “o companheiro Tabaré Vásquez responderá à esperança que o povo uruguaio depositou nele”. Resta saber o que Mujica fará se o medo vencer a esperança.