Se Dalai Lama, o maior líder espiritual budista, repetisse a visita que fez em 1999 ao Brasil, seria preciso reservar o Maracanã, um dos maiores estádios de futebol do mundo, para congregar seus seguidores. Surgido no século VI a.C. na Índia, o budismo entra no século XXI como uma influência espantosa no Ocidente. No Brasil, seus mantras, incensos e fundamentos, que nada têm a ver com as religiões de massa, enchem de adeptos os templos e cursos de meditação. Em 1991 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrava 236.403 praticantes. Hoje só a Associação Brasil Soka Gakkai, uma das várias linhagens, contabiliza 150 mil. Outros sinais compensam a falta de dados exatos sobre o crescimento do número de praticantes. O Lha Khang, o maior templo budista da América Latina e o primeiro do Brasil, construído há três anos no Rio Grande do Sul, recebe em média 400 visitantes estrangeiros por mês. No mercado editorial, há uma explosão de livros sobre o tema: mais de meio milhão de exemplares vendidos nos últimos seis meses. O carro-chefe é A arte da felicidade, do próprio Dalai Lama, que bateu a marca de 180 mil em dois meses.

A sedução dos ensinamentos destes monges orientais é ampliada pela adesão crescente de artistas e famosos mundo afora. A lista é comprida. O ator Richard Gere, o músico Jean Michael Jarre e a cantora Tina Turner têm pares brasileiros, convertidos ou simpatizantes, como Cláudia Raia, Edson Celulari, Betty Faria, Elba Ramalho, Rita Lee, Gilberto Gil, Christiane Torloni, Sílvia Pfeifer, Maurício Mattar, Odete Lara, Milene Domingues, Patrícia Travassos, Paulo Ricardo e o ex-governador do Espírito Santo Vítor Buaiz, só para citar alguns. No discurso de todos eles, o ponto comum é a busca da serenidade.

Bom senso – Essas pregações de compaixão, amor, paz e equilíbrio tão diferentes das leis da competição de nossa época tornam o sucesso do budismo no mundo capitalista ainda mais enigmático. Lia Diskin, uma das fundadoras do Instituto Palas Athena, em São Paulo, atribui ao “budismo do bom senso” a ampliação da religião em países como o Brasil. “O que está provocando engajamento tão grande é o compromisso com as necessidades do ser humano no dia-a-dia”, diz. O sociólogo francês Fredéric Lenoir, estudioso das religiões, costuma dizer que o budismo é moderno porque une pragmatismo e espiritualidade e trata temas de nossa época de forma tolerante. Eleonora Furtado, fundadora do Instituto Nyingma, com sede no Rio de Janeiro, acentua o caráter de auto-ajuda da filosofia: “No budismo, você aprende a se ajudar.”

Há divergências, no entanto, na classificação do budismo. Seria seita, religião ou filosofia? Lia não concorda com nenhuma das alternativas. “É um modo de viver, de pensar.” De fato, não há deuses a quem pedir perdão ou fazer pedidos e não é necessário frequentar templos ou reuniões – o que facilita a vida dos moradores dos grandes centros urbanos. As meditações podem ser feitas em qualquer lugar: “Por que não aproveitar o engarrafamento do trânsito?”, sugere Lia. O teólogo Frei Betto diz que o budismo parece mais “cômodo” por não exigir hierarquias nem defender a idéia de céu e inferno. Mas, lembra ele, engana-se quem pensa ser fácil chegar às instâncias mentais pregadas pelos mestres. “Pelo contrário, exige disciplina ascética rigorosíssima e desprendimento de si e do mundo.”
 

Realmente, os iniciantes tendem a achar que vão resolver os seus problemas imediatos. Eleonora conta que muitos alunos chegam ao Instituto Nyingma com três desejos em comum: se cuidar, ser feliz e se livrar do sofrimento. “Aqui e agora, nessa vida”, frisa ela. Muitos, no entanto, alcançam o objetivo de forma indireta. O empresário Nelson Chamma Filho, 43 anos, marido da atriz Sílvia Pfeifer, por exemplo, mudou de vida: “Encontrei o meu caminho para o equilíbrio.” Tornou-se um dos professores do instituto e dá cursos em empresas. Sua especialidade é budismo no trabalho. Executivo da área de mineração, Chamma sabe muito bem o que é stress. “Usamos a meditação em ação, que é estar atento a tudo, ambiente e corpo. Isso nos faz perceber melhor os outros”, afirma. Para ele, com gentileza e controle é possível atingir metas bem materialistas. Os princípios budistas ajudam a desenvolver a produtividade, eficiência, concentração, cooperação e comunicação entre os indivíduos. “Se o funcionário expandir ao máximo suas capacidades, trará benefícios para a empresa e para si próprio”, explica ele.

Iluminados – Trabalhos como esses podem ser importantes para desmistificar a idéia de que o budismo é só para iluminados. André Porto, articulador do Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser), do Rio de Janeiro, aponta a simplicidade das propostas como uma das principais atrações. “Dalai Lama diz: Você quer ser religioso? Faça o bem e seja afetivo.” A decisão foi tomada há três décadas pelo engenheiro Luiz Monteiro, 66 anos, frequentador do Templo Rio de Janeiro. “Eu fazia análise de grupo na época e alguém falou da paz que sentia no templo. Era o que eu estava buscando. Fui conhecer e não imagino mais a vida de outra forma”, conta. Esse “oásis” segue a linha mais antiga e rigorosa do budismo, a Theravada, e está sob a direção do respeitado monge Puhulwelle Vipassi, que calcula um aumento de 70% na frequência do templo, hoje com dez mil membros. Ele diz que a maioria procura o budismo para fugir do sofrimento e descomplicar a vida. “A concentração é a chave para alcançar a paz. Respiração é muito importante. Nunca se deve expirar e inspirar sem atenção”, ensina. No templo, uma relíquia chama a atenção. O monge trouxe de Sri Lanka um pouco de cinzas atribuídas a Buda (que foi cremado) e as exibe, numa caixa de vidro, todo ano na única noite de lua cheia do mês de maio, que este ano cairá no dia 7.

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Formalidade – De qualquer forma e apesar do crescimento acentuado, o budismo não leva jeito para se tornar uma religião massiva. Se vai em busca de lenitivos materiais e imediatos, o crente sai frustrado. “Quem quer pão não vai atrás de meditação”, afirma seriamente o monge Vipassi. Eduardo Albuquerque, professor de história das religiões na Universidade Estadual Paulista (Unesp), concorda. “Aqui o budismo é uma religião intelectualizada. Os grupos de estudo discutem textos escritos em sânscrito e dialetos indianos, apesar de não serem formados por descendentes de imigrantes”, atesta ele.

Aconteceu também que, ao sair dos monastérios e se debruçar sobre o mundo leigo, a religião ancestral dos monges tibetanos perdeu um pouco de sua formalidade. E esse é outro fator que dificulta quantificar seus adeptos. O pesquisador Ricardo Mário Gonçalves, professor aposentado da Universidade de São Paulo e estudioso do budismo há quatro décadas, lembra que ele pode ser praticado em casa e não é necessário romper com outras religiões ou crenças. Nas estatísticas, muitos budistas aparecem como católicos. O ex-governador do Espírito Santo Vítor Buaiz é um exemplo. Ele se identifica como católico, mas frequenta o Mosteiro Zen-Budista em Ibiraçu, perto da capital capixaba. O mesmo faz a fotógrafa e cinegrafista carioca Paula Canella, 36 anos, que é católica, acredita em Deus e, eventualmente, faz oferendas para Buda no pequeno altar em sua casa. “Primeiro a água, depois a luz, o incenso, as flores, a comida e a música. O ritual da meditação varia de acordo com o tempo que tenho disponível. Faço mantras, meditação e tento ter atitudes que não prejudiquem os outros. Me sinto melhor do que antes”, explica ela.

A discrição é outra característica dos praticantes. Diferentemente de religiões como as evangélicas, que utilizam muito bem os meios de comunicação, o budismo é silencioso. A lama Tsering Everest, que lidera um dos centros de meditação mais famosos do país, o Chagdud Gonpa Odsal Ling, em São Paulo, atesta: “Você nunca verá um budista na esquina distribuindo panfletos.” Lama Tsering não se abala em perceber que o budismo está entrando na moda. “Vejo pessoas interessadas em saber mais sobre a vida, o amor, a ciência. Se elas me procuram inspiradas por Richard Gere, tudo bem. Pode não ser um começo promissor, mas elas acabam encontrando algo mais a que se apegar.” Tsering nunca viveu em monastério e aprendeu tudo com o lama Chagdud Tulku Rimpochê, seu conterrâneo, que veio ao Brasil para ajudar na construção do templo Lha Khang, no Sul. “Eu era cristã, mas vi que Buda e Deus são diferentes palavras para um mesmo princípio. O budismo é um instrumento para exercitar a mente para a compaixão e a felicidade”, explica Tsering. Para ela, não é preciso abdicar dos bens materiais e dos prazeres da vida terrestre para ser feliz. “O mais importante é reduzir o apego às coisas e se livrar de sentimentos negativos, como o rancor e a mágoa, verdadeiros venenos da mente”, explica.

Embora a faixa etária predominante de adeptos esteja entre 30 e 50 anos, jovens e adolescentes também estão se infiltrando. O universitário Júlio César Mairena Canha, 20 anos, é frequentador do templo Odsal-Ling, em São Paulo. Foi atraído pela identidade de pensamento: “O budismo tibetano prega que todos os seres humanos são iguais em essência. Eu penso assim.” Quando os amigos fazem perguntas, ele prefere levar a pessoa ao templo do que dar respostas. Uma atitude em sintonia com os ensinamentos de Buda: “Não façam o que eu falo só porque eu falo. Façam suas próprias investigações.” Recentemente, Júlio levou a amiga e também universitária Beatriz Singer, 21 anos, para satisfazer sua curiosidade no templo. Ela se disse “impressionada” e vai voltar para fazer suas próprias pesquisas.

Em alguns centros, até crianças se iniciam. É o que acontece no Dharma da Paz Shi De Choe Tsog, no bairro das Perdizes, em São Paulo, no qual se reúnem diariamente cerca de 70 pessoas para praticar o budismo tibetano. O local é presidido pela psicóloga Isabel César, mãe do lama Michel Rimpoche, o brasileiro de 19 anos considerado a reencarnação de um lama tibetano. O pequeno Shawan Ruiz, seis anos, é um dos mais jovens integrantes da comunidade. Os pais, a advogada Vera Abrão, 44 anos, e o consultor financeiro Jorge Ruiz, da mesma idade, praticam o budismo desde 1996. O irmão mais velho, Iuri, 15 anos, e a prima Sílvia Yasmin, 12, são exemplos para Shawan. “Mantras e meditação me tornaram mais calmo e concentrado. Isso ajuda na escola”, diz Iuri. “É muito legal poder ficar quietinha e meditar”, completa Sílvia.

Essas palavras na boca de uma pré-adolescente podem soar estranhas. Mas como diz sua santidade, o Dalai Lama, do jeito que o mundo está confuso, tenso e egoísta, só mesmo uma revolução espiritual. Pode ser que ela já tenha silenciosamente começado.

Elba Ramalho, cantora
“Não me considero de nenhuma religião; eu busco Deus. Tenho em casa um santuário com imagens de Jesus, Maria, Buda e quadros de espíritos amigos. O grande barato do budismo é a forma como se trabalha a mente — um portal que está aberto para estados elevados. Ensina como viver bem e morrer bem, a promover a paz interior e harmonizar-se com o universo. ”

  Gilberto Gil, cantor
“Muita gente diz que eu sou zen. Essa palavra virou designação para pessoas calmas e com uma visão de amor incondicional ligado à espiritualidade. Me encaixo nesse contexto. Tenho várias músicas nitidamente influenciadas pelos princípios budistas, como Andar com fé, Realce, Tempo rei. São canções que falam desse sentimento profundo de transcendência.”

  Cláudia Raia, atriz
“Sou budista há 13 anos. A primeira coisa que eu e o Edson (Celulari) fizemos quando chegamos da maternidade foi levar nosso filho, Enzo, ao altar e oferecê-lo a Buda. Com seus ensinamentos, aprendi que a grande chave da vida é a humildade. Claro que tenho vaidade; sou artista, vivo de aplausos, de me mostrar. Seguro meu ego com um lexotan espiritual.”

  Sílvia Pfeifer, atriz e modelo
“Acho a filosofia budista muito pé no chão e isso combina comigo. É, sem dúvida, um caminho para mim. Com o budismo, aprendi a lidar melhor com os pensamentos negativos e excesso de nervosismo, aprendi a ter compaixão solidária e não melodramática. É melhor compreender as dificuldades da vida para sofrer menos, é melhor viver e não se angustiar”

O Iluminado
O príncipe Sidarta Gautama nasceu na Índia em 566 a.C. e cresceu protegido pelas muralhas do palácio de Kapilavástu. Casou-se aos 16 anos e teve um filho, o príncipe Tahula. Aos 29 anos, começou a ser atormentado por questões existenciais porque foi nessa idade que tomou conhecimento de um mundo miserável além dos limites do palácio. Abandonou a riqueza e a família para procurar respostas para suas angústias. Vestiu um manto amarelo e foi para a floresta, de onde nunca voltou. Ao fim de um longo processo de aprendizado, com privações e cansaço, finalmente realizou a inefável Verdade e viu a contingência de todas as coisas mundanas. Após atingir a completa Iluminação, recebeu o nome de Buda (que quer dizer O Iluminado) e passou a pregar para multidões por mais de 45 anos, até morrer com 80 anos de idade.

Colaboraram: Celina Côrtes e Sara Duarte



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