O escritor que revoluciona a literatura portuguesa conta como a influência brasileira foi fundamental em sua obra, comenta sobre a Copa e afirma que a presidenta tem um perfil militar

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COPA
"O Brasil está no ponto de fazer uma burrada
ou ascender como uma grande nação", diz ele

 

 

O escritor Valter Hugo Mãe via o mundo embaçado até os 11 anos. Julgava que todos apreciavam as paisagens e as pessoas como telas de Van Gogh. “Não sabia que eu enxergava mal, até perceber que as pessoas conseguiam ler as legendas da televisão e eu não”, conta. Hoje, ele vê o mundo com uma nitidez desconcertante, como mostram seus livros. Filho de portugueses, nascido em Angola, Valter Hugo Lemos – Mãe é pseudônimo – retornou a Portugal antes dos 5 anos. De Vila do Conde, ao norte do país, onde vive até hoje, ele escreveu romances retumbantes a ponto de ganhar de José Saramago o apelido de “tsunami literário”. Três anos antes de morrer, o Prêmio Nobel português disse que, ao ler seu conterrâneo, hoje com 42 anos, tinha a sensação de assistir a “um novo parto da língua portuguesa”. Mas foi na Flip (Festa Literária de Paraty) de 2011 que Valter Hugo ganhou notoriedade por aqui.

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"Cristiano Ronaldo não iria fazer nenhum milagre.
Ele sozinho não poderia conquistar a Copa para Portugal"

 

 

Admirado por Chico Buarque e Caetano Veloso, naquela ocasião emocionou a plateia com uma declaração de amor ao Brasil. Em Paraty, o escritor português contou que descobriu os encantos do País com as belas vizinhas brasileiras, as primeiras que vira fora da tevê. Valter Hugo acabou de lançar em São Paulo seu sexto romance – “A desumanização” (Ed. Cosac Naify). Em agosto ele volta para um festival literário em Curitiba. E em setembro lança em São Paulo, antes de Portugal, um novo livro: “O Paraíso São os Outros” (Ed. Cosac Naify). “É dedicado ao público jovem e trata da estranha mania dos adultos de estar sempre à procura de um par”, diz. Ele não veio para a Copa, mas, de Portugal, acompanha na tevê seus melhores e mais dramáticos lances. “Só não vejo demasiado para não me tornar cardíaco.” 

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"Gostei das manifestações. Achei alguns slogans bem sacados.
Um cidadão é isso: exige, protesta. Tenho esperança
de que o Brasil seja um dos países deste século"

ISTOÉ

 Você esperava mais de Portugal na Copa?

 
Valter Hugo Mãe

 Fiquei com pena de nós todos, portugueses. Cristiano é muito rico para ter pena dele. A namorada dele é linda. Mas foi desolador. Temos supostamente o melhor jogador do mundo. Esperávamos no mínimo que não tivesse ido tão mal. Quando fui ao Brasil da última vez, voltei num voo ao lado do Paulo Bento, técnico de Portugal. Disse que simpatizava com ele, que esperava que ganhasse. Agora penso em ligar e dizer: “Paulo, o que aconteceu?” Mas pressentia: Cristiano Ronaldo não iria fazer nenhum milagre. Ele sozinho não poderia conquistar a Copa para Portugal. 

 
ISTOÉ

 E a eliminação da Espanha?

 
Valter Hugo Mãe

 A gente gostou, né? E só não rimos de gargalhada por nós também termos perdido. Ainda teve a coroação do novo rei da Espanha no mesmo dia da derrota… coroação esta que Portugal ainda vê como anedota. A gente abateu a monarquia há tempos. E eles ficam brincando de princesa. Lamento, mas, entre vizinhos, o amor é assim.

 
ISTOÉ

 E o Brasil? Felipão leva a taça?

 
Valter Hugo Mãe

 Acho Felipão – como digo isso? – um pouco brega. Ele deve consultar orixás, búzios. E, de vez em quando, toma umas decisões por fé. Às vezes o futebol está na cara: é bom. É ruim. Até eu sei disso. 

 
ISTOÉ

 Essa antipatia nasceu quando ele foi técnico da seleção portuguesa?

 
Valter Hugo Mãe

 Em Portugal, Felipão foi muito casmurro. Uma vez, bateu num jogador. Um jogador se aproximou do outro e ele deu um tapa. “Ah, eu só estava protegendo o menino”, ele disse. Fez uma burrada, promoveu a violência. Jogadores de futebol não são meninos. São cavalos de corrida, homens enormes e não precisam de um velho para protegê-los. Felipão é meio bobão.

 
ISTOÉ

 Há 15 anos você frequenta o Brasil. O País mudou?

 
Valter Hugo Mãe

 A mudança é espantosa. As primeiras vezes em que viajei pelo Brasil, em 2000, chegando pelo Rio ou por São Paulo, tinha gente propondo todo tipo de negócio, de sexo a droga. Gente que não era taxista oferecendo carona. Enfim, nós ainda estávamos dentro do aeroporto e já sentíamos a insegurança absurdamente. Hoje chego nos mesmos aeroportos e é tão aborrecido e seguro quanto qualquer aeroporto do mundo.

ISTOÉ

  Como vê a Copa para o Brasil?

 
Valter Hugo Mãe

 A Copa pode ser uma história de sucesso. Espero que sirva para ajudar o Brasil com essa ilustração de país capaz. Se o país gasta o dinheiro com as coisas corretas é diferente. Agora, gastar dinheiro no Brasil é fundamental. O País é muito grande. Quando se pensa em algo, tem que pensar em algo grande. Precisa de estádios, de estradas, de grandes construções. Só espero que estejam construindo coisas que tenham uso, que motivem a juventude para o esporte. Ao mesmo tempo, o Brasil é uma lição de criatividade. Tem o segredo de saber fazer omeletes sem ovos. No momento do evento, podem chegar que vamos recebê-los. O País tem essa propensão ao bonito. O Brasil está no ponto perfeito para fazer uma burrada enorme ou ascender de uma vez por todas como uma grande nação. 

 
ISTOÉ

 O que você achou de Dilma ter sido xingada na abertura da Copa? 

 
Valter Hugo Mãe

 Achei legítimo. Dilma nem merecia nem deixa de merecer. Não é uma questão pessoal e o mundo vai saber entender isso. É um cargo ocupado por uma mulher que está a tomar suas decisões. Estará às vezes certa, e às vezes errada. (O xingamento) Não é nem feio nem bonito. Isso de ter dito que não se abaterá foi bom. Um líder não pode ser muito boiolinha, cheio de frescurinha. Um líder deve ter a força que às vezes não temos: ser vaiado e ficar de pé.

 
ISTOÉ

 Você tem acompanhado a campanha presidencial?

 
Valter Hugo Mãe

 Não, mas sinto que a Dilma está sendo crucificada demais. Que ela não seja a presidente perfeita, é uma coisa. Que seja tudo isso que têm dito, parece-me demasiado. Aumentou em 10% o Bolsa Família e, em vez de celebrarem minimamente, dizem que é horrível. Não há nada em lugar nenhum do mundo que esteja a subir 10%. Em Portugal, o normal é ouvirmos que vai ser cortado 10%. 

 
ISTOÉ

 Como você vê Dilma?

 
Valter Hugo Mãe

 Forte, austera. Não é uma mulher que faz a gente morrer de amores por ela. Mas a gente espera que seja boa presidente, que não seja corrupta. Tenho simpatia por Lula. Adoraria jantar com ele. Lula foi um homem que teve um sonho e que o concretizou mais ou menos. Dilma passa mais realidade. Tem menos sonho. Tem um perfil mais militar. É um general de si mesma. Talvez, por ter sido torturada, não possa ser cândida como Lula. 

 
ISTOÉ

 No livro “Máquina de Fazer Espanhóis”, você diz: “Os portugueses são cidadãos não praticantes.” Por quê? 

 
Valter Hugo Mãe

 Quando digo isso, critico a herança de 48 anos de ditadura no século XX. Também brinco com a expressão católicos não praticantes. Ora, ou você é católico e pratica, ou não pratica e é agnóstico. Em Portugal, as pessoas foram levadas a não fazer, não pensar, não opinar. Desenvolveram o espírito de menosprezo, desprezo e incapacidade.

 
ISTOÉ

 Que cidadãos o Brasil tem?

 
Valter Hugo Mãe

 Cada vez mais praticantes. Gostei de ver as manifestações. Achei alguns slogans muito bem sacados. Um cidadão é isso: exige, protesta. Por isso, tenho esperança de que esse momento-chave, em vez de resultar numa burrada, resulte numa redenção para que o Brasil seja um dos países deste século. 

 
ISTOÉ

 Há mais influência dos brasileiros na sua vida?

 
Valter Hugo Mãe

 O Brasil influenciou muito Portugal nas últimas décadas. Ajudou a abrir um país antigo. Nós precisamos dessa energia. Li Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Ignácio Loyola Brandão, Drummond. Não sou só o escritor que leu os brasileiros. Para mim foi fundamental o despudor em relação à língua. Em Portugal, somos muito ortodoxos. Não achamos que temos o direito porque não somos ninguém para inventar alguma coisa que Eça (de Queiroz) já não tenha inventado. O português falado pelos outros países é muito mais livre e criativo. 

 
ISTOÉ

 Como foi a experiência de dormir no quarto de Fernando Pessoa?

 
Valter Hugo Mãe

 Foi impactante. Aprendemos a criar um misticismo em torno de Fernando Pessoa. Convidaram-me para dormir no quarto dele, de forma privada, no meio das coisas dele, em Lisboa. Eu estava ali, ao lado da cômoda onde ele escrevia e guardava seus manuscritos. Tenho alguma reticência em acreditar no além, mas há qualquer coisa em mim que me manda acreditar. 

 
ISTOÉ

 É ateu?

 
Valter Hugo Mãe

 Não diria que sou ateu, mas acho que vou até a morte pedindo perdão. Sempre fui muito crente. Queria até ser padre. Queria estar do lado que eu considerava bom. Até os 8 anos tive essa fase estranha. Queria viver nessa dimensão de pureza extrema. Depois percebi que a santidade ia estragar muita coisa em mim. Eu era a criança perfeita. Daquelas que se dissessem “senta aí” esperaria três horas. Quando, aos 10 anos, disse a minha mãe que queria comprar um livro de Alfred Hitchcock, ela ficou preocupada. Foi o primeiro livro que li. Eu era tão contemplativo que minha mãe achou que havia algo errado. “Talvez ele procure num livro a companhia que não consegue ter”, pensava ela. 

 
ISTOÉ

 Você contou na Flip de 2011 que era pequeno quando viu as primeiras brasileiras fora das novelas. Como foi?

 
Valter Hugo Mãe

 Foi especial. Em Paços de Ferreira, onde morei, nada acontece. Todos comentavam da chegada das brasileiras: eram seres mágicos porque sabiam o final das novelas. Era como se elas viessem de um mundo posterior ao nosso.

ISTOÉ

 Por quê?

 
Valter Hugo Mãe

 Havia um sentimento de gratidão em nós. Era estranho elas quererem voltar a viver no passado. Pensávamos: por que elas ainda querem viver nesse tempo que já não é o delas? No verão, elas usavam biquínis mais decotados. Traziam o lado festivo e sabiam fazer pizza. Lá ninguém tinha a receita.

 
ISTOÉ

 Por ter nascido em Angola, você sofreu racismo em Portugal?

 
Valter Hugo Mãe

 Meus pais são portugueses e moraram em Angola. Nasci lá e regressei pequeno. Fui viver em Paços de Ferreira. Percebi, aos 5 anos, que éramos aquilo que se chamava em Portugal de “os retornados”: pessoas que viviam em Angola ou Moçambique, mas com a Revolução dos Cravos regressavam. Lembro de as pessoas me chamarem de preto, como se eu fosse um negro africano. Era uma forma de racismo. Minha memória mais forte era de uma funcionária da escola. No recreio, eram servidas canecas de leite. Ela nunca enchia a minha caneca e dizia: “Vamos ter que alimentar o preto”. Isso causava uma confusão enorme em mim, porque eu nem lembrava de como eram as pessoas em Angola. 

 
ISTOÉ

 Você sentiu o preconceito?

 
Valter Hugo Mãe

 Descobri que existia gente negra quando, num supermercado, uma senhora me disse: “Vai para a tua terra. Estás aqui a comer o que é nosso. As mulheres em Angola não têm filhos normais. Elas põem ovos. Depois não cuidam deles. Eles que partam a casca.” Fui para casa e perguntei a minha mãe se as pessoas em Angola eram negras. Ela disse sim. Perguntei se eu ia ficar negro. Mas minha mãe disse: “Não, vais ser sempre assim, amarelinho.” Fiquei frustrado. Pensei que, eventualmente, ser negro deveria ser incrível. Eu me olhava e pensava: Uau! E se eu fosse preto?! À noite ninguém iria me ver. Seria o homem-aranha de Paços de Ferreira.