A crise argentina atingiu na semana passada seu ponto mais crítico desde que o país precisou, em dezembro de 2000, recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para não quebrar. O governo De la Rúa teve de cancelar um leilão de títulos públicos que ocorreria na terça-feira 23 e serviria para tomar emprestados US$ 700 milhões de bancos e fundos de pensão argentinos. Como os investidores pediram taxas astronômicas para emprestar ao governo, o ministro Domingo Cavallo não teve outra alternativa a não ser adiar o leilão. Foi mais uma porta que se fechou para o governo, que desde setembro de 2000 não consegue captar dinheiro no Exterior por falta de credibilidade. O principal termômetro da confiança internacional atingiu o fundo do poço no dia seguinte ao do fracasso do leilão, e as taxas de juros, mais uma vez, dispararam no mercado financeiro do país. Pareceu iminente – e inevitável – a decretação de uma moratória, com a suspensão do pagamento da dívida externa a seus credores.

Arrastados pela instabilidade argentina, outros países chamados emergentes, entre eles o Brasil, sentiram o tranco. Por aqui, a reação à crise acertou em cheio o mercado de câmbio. O dólar comercial bateu seguidos recordes de alta, com a moeda negociada por até R$ 2,30. A cotação significa uma alta acumulada de 21% em seis meses, contra uma inflação no período de cerca de 3%. O Chile também foi atingido e a moeda local, o peso chileno, registrou sua cotação mais baixa em relação ao dólar. Os títulos emitidos pelos governos da Rússia e das Filipinas também caíram no mercado internacional com a possibilidade de a turbulência arrastar outras economias com alto grau de endividamento.

Nos próximos três meses, a Argentina terá de pagar a seus credores aproximadamente US$ 6 bilhões, e os últimos lances deixaram claro que não será nada fácil descobrir de onde tirar todo esse dinheiro. Diante desse quadro, a recessão que a Argentina enfrenta há quase três anos tem pouquíssimas chances de terminar, ao menos no curto prazo. Bem mais provável é a economia se retrair ainda mais, consideram analistas e economistas.

Em artigo publicado no The Wall Street Journal, o economista americano Charles Calomiris deu o tom: a Argentina não terá outra opção senão renegociar sua dívida. A reação de Cavallo veio em outro artigo, este publicado no Financial Times dois dias depois. “O verdadeiro problema da Argentina não é sua dívida”, escreveu o ministro. Para ele, o país não precisará desvalorizar o peso para sair da crise.

Renegociação – Crítico contundente do ministro, o economista e consultor argentino José Luis Espert, colunista do jornal econômico argentino Ambito Financiero, considera que Cavallo escolheu o remédio errado. “O caminho escolhido por Cavallo é típico de governos irresponsáveis, que preferem não pagar os custos políticos dos ajustes inevitáveis”, disse o economista a ISTOÉ. Para Espert, Cavallo deveria se concentrar em cortar os gastos públicos. “No curto prazo, o problema da Argentina é fiscal. Por isso, a única possibilidade de evitar o caos é reduzir o déficit em US$ 15 bilhões”, considera. Mesmo a renegociação da dívida, que apareceu no final da semana passada como uma luz no fim do túnel, poderá trazer resultados indesejados, avalia Espert. O governo De la Rúa anunciou que negocia com seus credores prazos maiores para pagar US$ 20 bilhões de sua dívida, que hoje chega a US$ 204 bilhões. “Se os bancos credores concordarem com prazos maiores, eles exigirão taxas altíssimas como contrapartida. O problema é que Cavallo insiste na rota do endividamento, desde o início do Plano de Conversibilidade, ainda no início dos anos 90, e esse é um erro gigantesco. A saída passa pelo crescimento econômico puxado pelas exportações”, diz o economista.

Ao menos uma boa notícia o ministro argentino da Economia teve para comemorar. Depois de vários dias de suspense, finalmente saiu o resultado de uma investigação em torno de Pedro Pou, que comandava o Banco Central do país. O relatório da comissão parlamentar encarregada de investigá-lo propôs o afastamento de Pou, acusado de favorecer um banqueiro ligado ao ex-presidente Menem e também de facilitar operações de lavagem de dinheiro. Em seu lugar, Cavallo conseguiu emplacar Roque Maccarone, ex-presidente do Banco de la Nación – uma espécie de Banco do Brasil argentino –, que também foi seu colaborador durante a primeira passagem de Cavallo pelo Ministério.

Apetite – A troca animou os investidores, já que Pou também divergia de Cavallo em relação a várias medidas tomadas pelo ministro para tentar injetar dinheiro no sistema financeiro. Maccarone já afirmou que concorda com Cavallo neste ponto. Mas disse que tem algumas divergências. A principal diz respeito ao projeto de atrelar o peso ao euro – e não apenas ao dólar, como é hoje. “O projeto é inoportuno”, cravou Maccarone. O FMI também demonstrou que está insatisfeito com Cavallo – cobrou do ministro novas medidas para acabar com a crise.

Para tentar aplacar o apetite dos investidores por dólares, o BC brasileiro precisou voltar a agir. Anunciou a realização de mais um leilão de títulos cambiais, em um valor de US$ 400 milhões. Como esses títulos acompanham a cotação do dólar, têm o efeito de reduzir a procura pela moeda propriamente dita. O lado ruim é que aumenta o endividamento do governo brasileiro em dólar. O presidente do BC, Armínio Fraga, pediu calma aos investidores, argumentando que o Brasil tem condições de enfrentar as turbulências. Aproveitou para desmentir que o país esteja negociando um empréstimo com o FMI. “As linhas do Fundo estão disponíveis, mas não estão no nosso cardápio no momento”, afirmou.

Barreiras por todos os lados

Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

a reunião da Cúpula das Américas em Quebec, os governantes das Américas apenas formalizaram o compromisso que já havia sido acertado por seus ministros das Finanças em Buenos Aires – iniciar a implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) até dezembro de 2005. Se bem que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, tenha ressalvado que não poderia impor prazos para a aprovação do acordo pelo legislativo – e, no caso da Venezuela, provavelmente também por referendo popular.

Os fatos novos mais importantes foram os posicionamentos do presidente Fernando Henrique e George W. Bush, colocando suas cartas na mesa. O presidente do Brasil explicitou que considera a Alca indesejável para nosso país se os EUA não removerem suas barreiras protecionistas não-tarifárias. E o presidente dos EUA declarou que a defesa de padrões ambientais e trabalhistas não deve restringir o livre comércio.

Essa não é a palavra final dos EUA sobre o assunto, pois seu Congresso pode exigir que essas questões sejam consideradas antes de conceder ao presidente um mandato para negociar. Só confirma que Bush vai jogar todo o seu peso contra os setores da sociedade civil que criticam sua política comercial, parte dos quais demonstraram sua oposição na cidade de Quebec.

Sessenta mil manifestantes participaram de uma marcha pacífica pela cidade. Três a seis mil envolveram-se em batalhas com a polícia e 450 foram presos. Algumas dezenas chegaram mesmo a derrubar parte do “muro da vergonha” que isolou o local onde se deram as reuniões. Não chegaram a perturbá-las seriamente, mas atrasaram seu cronograma em mais de uma hora, enquanto uma nuvem de gás lacrimogêneo envolvia a cidade. Numa manifestação paralela no Brasil, 600 estudantes e jovens anarquistas também enfrentaram a polícia e depredaram uma lanchonete McDonald’s.

Na América Latina, movimentos populares começam a se articular para ampliar o debate e exigir que seus governos realizem plebiscitos sobre a adesão à Alca em cada país. Isso pode derrubar os muros entre as cúpulas e os povos das Américas de uma forma mais eficaz que a dos manifestantes de Quebec. Mas os obstáculos à concretização da Alca não estão só aí: os EUA não se mostram dispostos a se comprometer com um socorro vultoso à Argentina, cuja crise ameaça abalar as economias em toda a América do Sul, onde a paixão pelo livre comércio esfria junto com o desaquecimento da economia americana e o recuo do liberalismo – agora também no Peru, onde a centro-esquerda de Alán García pode tomar o lugar que foi de Fujimori.