Só mesmo um poeta como João Cabral de Melo Neto poderia descrever com tamanha delicadeza o que significa o alívio promovido por um simples comprimido a um dos maiores tormentos da humanidade. A dor de cabeça, da qual o escritor era uma vítima constante, aflige nada menos do que 75% dos brasileiros, segundo pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. E no mínimo 10% da população padece de um de seus tipos mais cruéis, a enxaqueca. No Brasil, estima-se que 20 milhões de indivíduos sejam periodicamente nocauteados por esse mal, muitas vezes acompanhado de náuseas e vômitos.

Felizmente, a medicina começa a dar mais esperança a tantos sofredores. Novos medicamentos chegam às farmácias com a promessa de acabar com a dor de maneira rápida e eficaz. Nos laboratórios aceleram-se estudos sobre os possíveis benefícios que a toxina botulínica – substância produzida por uma bactéria capaz de paralisar os músculos que, em pequenas quantidades, é usada para amenizar rugas – poderia trazer. Atuando em outra frente, médicos e pacientes iniciaram um movimento para melhorar o diagnóstico da dor. Essas iniciativas e a eficácia dos tratamentos preventivos oferecem um resultado alentador. A dor de cabeça está cada vez mais sob controle.

Já não era sem tempo. As cefaléias – nome científico da dor de cabeça – castigam o ser humano desde que o mundo é mundo. Há registros de tratamento seis mil anos antes de Cristo. Mas tão importante quanto a disposição da ciência em enfrentar o problema é a conscientização de que a dor de cabeça merece ser abordada seriamente. “Até as cefaléias comuns precisam de orientação adequada”, afirma Carlos Alberto Bordini, chefe do Ambulatório de Cefaléia do Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão Preto. Sanar é um verbo de aplicação controversa nessa área. Alguns médicos sustentam que a enxaqueca, um dos distúrbios mais estudados, não tem cura. “Mas com tratamentos prolongados é possível que o doente nunca mais tenha dor”, rebate Bordini.

Mas não há dúvida de que a ciência virou o jogo. Hoje já estão descritos cerca de 150 tipos de cefaléias, cada um com características e causas específicas (leia quadro à pág. 111). Pelo tamanho desse caleidoscópio, compreendem-se as dificuldades para vencer a doença. Nos últimos anos, porém, com o avanço nos conhecimentos sobre as substâncias envolvidas no funcionamento do cérebro – onde os sinais da dor são processados –, ficou mais fácil entendê-la e enfrentá-la.

Trigêmeos – Descobriu-se, por exemplo, que o mecanismo da cefaléia envolve os nervos trigêmeos (cujas raízes estão na parte posterior da cabeça). Uma inflamação provocada por agente infeccioso, por exemplo, sensibiliza esses nervos, que geram estímulos transmitidos como dolorosos ao sistema nervoso central. Mas o que acontece quando não há lesão que justifique essa reação, como é o caso das enxaquecas? A resposta não é simples. Por enquanto, sabe-se que a migrânea (outro nome da enxaqueca) é genética. E que a liberação anormal de neuropeptídeos (cadeias de aminoácidos) provoca a vasodilatação de artérias cerebrais. “É como se elas estivessem lesadas. As artérias sofrem também um tipo de inflamação, mesmo sem a ação de um agente infeccioso”, explica o neurologista Getúlio Daré Rabello, do Ambulatório de Cefaléia do Hospital das Clínicas de São Paulo. A combinação desse tipo de quadro inflamatório com a vasodilatação potencializa a transmissão dos sinais de dor.

Foto: Ricardo Giraldez

“As dores ainda aparecem, mas menos intensas e com intervalos de dias bem maiores. Passei um mês inteiro sem enxaqueca”

Gisleine Ribeiro, analista comercial

As pesquisas revelaram que a serotonina, um neurotransmissor (substância responsável pela comunicação entre os neurônios) regulador de várias reações cerebrais, também cumpre papel importante na evolução da enxaqueca. Se injetada no corpo de quem sofre do mal, ela interrompe a dor ao diminuir a inflamação das artérias. O problema é que a substância não age exclusivamente no mecanismo da migrânea. Quantidades desequilibradas de serotonina estão relacionadas, por exemplo, à depressão. Para evitar interferências nesses outros processos, inventaram os triptanos. “São remédios que imitam o neurotransmissor, mas têm atuação específica para essa cefaléia”, completa Rabello. As drogas são indicadas para amenizar as crises. Outro grande passo foi a identificação no cérebro de uma região geradora de enxaqueca. Essa área pode ser ativada, por exemplo, por mudanças hormonais próprias do período menstrual ou excesso de barulho. Se isso ocorrer, os nervos trigêmeos entram em ação e a dor aparece.
Todo o conhecimento serviu para aperfeiçoar os tratamentos preventivos e também dos sintomas das dores de cabeça. Muitas das estratégias de combate ao problema utilizam, por exemplo, os antidepressivos. Essas drogas são indicadas porque regulam os níveis de serotonina lentamente, funcionando como analgésicos do sistema nervoso central.

A enxaqueca e a cefaléia do tipo tensional crônica, mais rara na população, podem ser prevenidas com esse medicamento. Em distúrbios como esses, recomenda-se ainda a terapia cognitivo-comportamental, uma espécie de treinamento psicológico para ensinar o doente a lidar melhor com a dor. “Eles são treinados a relaxar”, esclarece Bordini. Outra abordagem é o uso dos antiinflamatórios. Nada mais lógico já que uma das causas da dor é a inflamação de algum órgão ou vaso sanguíneo cerebral. E para a prevenção da enxaqueca, há ainda os betabloqueadores (usados contra doenças cardíacas).

 

 

Para muitas dores, os analgésicos tradicionais continuam valendo. O desempenho das vendas do Excedrin, remédio lançado há dois anos no Brasil, entretanto, surpreende. Segundo pesquisa feita pela International Market Service, especializada em auditorias da indústria farmacêutica, a droga foi a mais receitada pelos médicos brasileiros no ano passado para as cefaléias tensionais episódicas, a mais comum entre a população. O sucesso desse medicamento – único do gênero – está na mistura de cafeína com o analgésico paracetamol. A combinação pode soar inadequada. Afinal, a cultura popular sempre ensinou que café e dor de cabeça não combinam. “Por isso é importante não confundir qualquer dor de cabeça com migrânea. A cafeína é excelente para a dor de cabeça tensional episódica porque melhora a absorção do analgésico, ampliando o efeito do paracetamol. Mas esse remédio não se aplica para a enxaqueca, que piora com o uso da cafeína”, explica o americano Jerome Goldstein, diretor da San Francisco Headache Clinic, instituição americana especializada em cefaléia. “Diagnóstico certo resulta tratamento correto”, emenda.

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Sofrimento precoce
Foto: Ricardo Giraldez
O tratamento preventivo permitiu que Tatiana se livrasse da dor e começasse a sair mais de casa

Dor de cabeça também é coisa de criança. Inclusive enxaqueca. Estima-se que 5% das crianças entre três e 12 anos sofram com o problema. E os progressos no conhecimento do mal chegaram a um ponto que seria possível identificar a futura vítima nos primeiros dias de vida. “Um estudo diz que no berçário pode prever-se que crianças terão enxaqueca. Elas se comportam diferente dos demais, têm sono agitado, tendem a sofrer mais de vômitos e apresentam crises de palidez”, explica o médico Deusvenir de Souza Carvalho, chefe do setor de investigação e tratamento das cefaléias do Hospital São Paulo, em São Paulo.

Alguns fatores desencadeadores das crises são jejum prolongado, mudança de horário de acordar ou ir para a escola ou comer em excesso. O tratamento é semelhante ao do adulto. “Se a crise é curta, recomendamos repouso e apoio dos pais. Se é extensa, é preciso dar remédios, como analgésicos. Para os adolescentes é possível receitar triptanos”, explica Carvalho. No Hospital São Paulo, o tratamento dura, no mínimo, de quatro a seis meses. A menina Tatiana de Oliveira, 13 anos, é uma das pacientes do ambulatório. Ela tem enxaqueca desde os sete anos e perdeu dias de escola e brincadeira por causa das crises. Com o tratamento, porém, está sem dor há quatro meses. Feliz e segura, voltou a sair de casa. Antes, tinha medo de sofrer uma crise a qualquer momento. “Comecei a sair, ir ao shopping, a parque de diversões”, conta, satisfeita.

Cabeça alternativa
Foto: Carlos Magno
Para tratarem da dor, o acupunturista Luiz Leonelli usa as agulhas e a osteopata Elaine de Carvalho coloca as articulações no lugar

Novos tratamentos alternativos estão surgindo para aliviar o dia-a-dia de quem sofre do mal. A eletroacupuntura é um deles. Ainda pouco difundida no Brasil, a técnica é baseada na acupuntura, método que restabelece o equilíbrio da energia do corpo por meio da colocação de agulhas em pontos do organismo relacionados ao problema a ser tratado. Na eletroacupuntura, as agulhas recebem pequenas descargas elétricas. A terapia deu um alento à funcionária pública carioca Maria José de Oliveira, 54 anos. Desde os 20, bastava sofrer algum stress que ela tinha dores que a incapacitavam para trabalhar e a faziam se entupir de remédios. “Chegava a tomar seis analgésicos num dia”, lembra. Desde o início do ano, quando começou a ser tratada na clínica Sohaku-in, no Rio, não sabe o que é dor de cabeça. “Antes, com ou sem motivo, eu tinha dor. Hoje, pode acontecer de tudo que não tenho. Esta semana, por exemplo, soube que não vou receber uma gratificação e não tive nada”, comemora.
Segundo o dono da clínica, o acupunturista Sohaku Bastos, a eletroacupuntura tem o efeito potencializado pelas descargas elétricas de cerca de 9 volts. “Cerca de 80% dos pacientes obtêm alguma melhora, desde a cura até o controle relativo e o espaçamento das crises”, garante. Na sua clínica, a dor de cabeça, incluindo a enxaqueca, é a queixa principal de 20% dos pacientes e uma das reclamações de 40% deles.

De acordo com o psicólogo e acupunturista Luiz Bernardo Leonelli, da Escola Paulista de Terapias, também podem ser indicados, dependendo do caso e normalmente associadas a acupuntura, shiatsu (massagem que trabalha os mesmos pontos da acupuntura, só que com a pressão dos dedos) e fitoterapia (utiliza remédios à base de plantas). “Esta técnica é recomendada para transtornos que se manifestam há algum tempo. A gingko biloba, planta de origem chinesa, por exemplo, beneficia as funções cerebrais”, explica.

Outra novidade é a osteopatia, técnica de fisioterapia que consiste em delicados movimentos na forma de impulsos rápidos sobre um ponto dolorido de uma articulação, músculo, ligamento e vísceras. A osteopatia visa restabelecer o equilíbrio da estrutura do corpo. Em desalinho, as articulações podem gerar dores locais e se estender até a cabeça. “Às vezes, a pessoa pisa de forma errada e aquilo reflete em todo o corpo e chega à cabeça”, diz a fisioterapeuta e osteopata Elaine Monteiro de Carvalho, coordenadora de osteopatia da Escola de Madri, instituição espanhola que oferece um curso de especialização na Universidade Castelo Branco, no Rio.
E o problema pode ser causado na própria cabeça. O crânio é formado por vários ossos, com espaços entre eles, chamados suturas. “Pancadas locais, disfunção na articulação temporo-mandibular e até stress costumam causar a contração das suturas, que devem ser manipuladas para voltar ao lugar”, explica Elaine. “Mas também é preciso tratar a causa primária, que nem sempre está na cabeça”, diz. Foi o caso do engenheiro José Carlos France, 43 anos, que sofria de cefaléia, sobretudo quando tomava bebida alcoólica. “Bastava beber um copo que ficava prostrado no dia seguinte”, lembra. Tentou tratamento homeopático, que deu algum resultado, mas as dores sempre voltavam. Com a osteopatia, quase não sente mais nada. Ele tinha um problema sério na coluna cervical que repercutia no crânio, e o álcool, por ser vasodilatador, causava dores horríveis. “As crises espaçaram e são muito mais fracas”, comemora ele. “Agora, no dia seguinte ao que bebo, posso jogar bola, não sinto mais nada. O tratamento é ótimo, não dói e é até agradável. É tão delicado que dá vontade de dormir”, afirma France.

Clarisse Meireles

Refém – O desconhecimento do problema pode também gerar danos mais sérios. A analista comercial Gisleine Gandolfi Ribeiro, 32 anos, de São Paulo, sabe bem disso. Ela foi refém da enxaqueca durante quase uma década. No começo, procurou um ginecologista porque imaginava que seus tormentos estavam relacionados a problemas no aparelho reprodutor. Gisleine até suspendeu o anticoncepcional. Não adiantou. Fez tomografias e ressonâncias magnéticas e não encontrou nada. Desesperada com as crises, recorreu até a cirurgia espiritual. Enquanto isso, entupia-se de analgésicos. Chegou a consumir nove comprimidos por dia. “Minha qualidade de vida foi a zero e acabei deprimida”, lembra. Há pouco mais de um ano, Gisleine procurou um neurologista. Passou a combater as crises com um remédio à base de rizatriptano, um dos mais modernos da classe. A droga é consumida a seco, se dissolve sobre a língua. “Não conseguia ingerir outros medicamentos porque água me causava enjôo. Com esse remédio, as dores ainda aparecem, mas menos intensas e com intervalos de dias bem maiores. Já passei um mês inteiro sem enxaqueca”, comemora.

Para alívio dos que são atingidos por enxaquecas, as novidades na área de remédios não param. Neste ano, chegou ao Brasil uma droga à base do sal divalproato de sódio, produzido pela Abbott. É recomendada para prevenção da doença e deve ser tomada todos os dias. E aguarda-se o lançamento, nos Estados Unidos, do eletriptano, o mais novo da classe, fabricado pela Pfizer. O remédio ainda está à espera de aprovação da FDA, órgão americano responsável pela liberação de medicamentos e alimentos. Mas promete. Em estudos realizados com mais de seis mil pacientes desde 1994, constatou-se que a droga agiu em uma hora em cerca de 30% dos voluntários. Em duas horas, melhorou a situação de 77% deles. “O mecanismo de ação do remédio é mais eficaz que o das outras drogas porque ele é absorvido mais rapidamente pela parede do estômago”, garante o médico Verne Pitman, do Departamento de Pesquisa Clínica da Pfizer nos Estados Unidos. No Brasil, os especialistas acompanham os estudos. “O remédio é um pouco mais eficaz do que os outros, pois apresenta tempo de ação rápido e duradouro. Mas não é revolucionário”, pondera o neurologista Marcelo Bigal, da Faculdade de Medicina da USP. Ainda não há previsão de quando o remédio chegará por aqui.

Outra esperança vem da área da beleza, para surpresa de muita gente. Trata-se da toxina botulínica do tipo A, o botox. O produto vem sendo estudado há cerca de dois anos como possível recurso para combater a doença. O interesse pela substância, que paralisa parcialmente os músculos faciais quando aplicada, foi despertado a partir de relatos de pacientes que recorreram ao produto para tratar rugas, mas observaram bons resultados contra as enxaquecas. Até agora, pelo menos um grande estudo já comprovou a observação das mulheres tratadas com botox. O trabalho foi feito por 12 centros americanos especializados no tratamento da cefaléia, durou três meses e analisou a reação de 132 vítimas de enxaqueca submetidas à aplicação do produto na fronte e nas têmporas. O resultado foi estimulante. Os cientistas constataram que houve redução na frequência e intensidade das crises e também diminuição no consumo de medicamentos para amenizar a dor. A pesquisa foi publicada na edição de abril da revista Headache, órgão oficial da Associação Americana de Dor de Cabeça e uma das mais conceituadas do mundo.

Surpresa – Animado com a conclusão, o médico brasileiro Abouch Krymchantowski, coordenador do ambulatório de cefaléias crônicas do Instituto de Neurologia Deolindo Couto da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Centro de Avaliação e Tratamento da Dor de Cabeça, no Rio, resolveu estudar a substância também por aqui. Há cerca de um mês e meio, ele começou a aplicar o botox em 16 pacientes que tinham de dois a oito crises de enxaqueca por mês. “Dois dos primeiros doentes que receberam a substância já ficaram sem dor. Estou surpreso”, afirma. Abouch, porém, é cauteloso e prefere ainda não comemorar. Ele pretende acompanhar os pacientes por pelo menos seis meses para depois formular uma opinião sobre os possíveis poderes do botox. Ele tem razão. Não há nada pior nessa área do que levantar expectativas em relação aos benefícios de um produto e depois vê-las dar em nada, em especial quando os mais interessados são pessoas que às vezes passam a vida à procura de algo que alivie sua dor. E em relação ao botox, de fato ainda é muito cedo para qualquer afirmação. Nem se imagina, por exemplo, qual seria o seu mecanismo de ação contra a enxaqueca. “Sabemos que é uma técnica segura, mas ainda é preciso esperar para uma conclusão mais precisa”, afirma Carlos Alberto Bordini, do Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão Preto. Isso não quer dizer, no entanto, que não se deva ter esperanças no produto. “Estou torcendo para dar certo. A perspectiva é boa”, afirma a neurologista Renata Lysia, 29 anos. A médica é uma das pacientes do estudo de Abouch. Ela sofre pelo menos duas crises por mês – é verdade que bem amenas graças ao tratamento de prevenção que segue, à base de antidepressivos. Mas ainda não sentiu os possíveis benefícios do botox. “Mas sei que os efeitos podem aparecer a longo prazo”, acredita. O empresário André Novak, 36 anos, tem experiência diferente. Ele também integra o grupo de vítimas da enxaqueca estudado por Abouch. “Recebi aplicação do botox há cerca de um mês. Nos primeiros 15 dias, não tive dor. Fiquei maravilhado. Tive uma crise e fiquei mais 15 dias sem nada. Mas dei uma piorada e sofri com a dor outras duas vezes”, conta. “Na pior das hipóteses fiquei com a pele da testa lisinha”, brinca.

Armadilha – O bom humor do empresário é coisa rara entre as vítimas da dor de cabeça. Nos casos mais graves, o problema chega a atrapalhar a vida social, familiar e profissional. Isso sem contar os que caem numa armadilha armada pela própria doença: tornam-se vítimas da chamada enxaqueca diária causada por abuso de analgésicos, descrita recentemente. O distúrbio atinge quem durante muito tempo fez uso inadequado e exagerado de remédios para amenizar a dor. “Quem toma analgésicos mais de três vezes por semana é um sério candidato a sofrer do problema”, avisa Paulo Monzillo, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. O fenômeno tem explicação. Esses remédios, quando tomados de forma incorreta, acabam inibindo a produção da endorfina, um analgésico natural fabricado pelo próprio organismo. É como se o corpo esquecesse o modo de fabricação da substância. O resultado é a criação de uma dependência dos remédios e a manifestação de dor de cabeça contínua. Se parar com os medicamentos, vem uma dor ainda muito pior. É a cefaléia de rebote.

Foto: Ronaldo Guimarães

“Eu torço para que a toxina dê certo. Sei que os efeitos podem aparecer a longo prazo”

Renata Lysia, neurologista

O bancário aposentado José Bóia Farias, 63 anos, foi vítima dessa armadilha. Nos últimos 28 anos, ele amarga a triste contagem de ter sofrido de cefaléia praticamente todos os dias. “Num mês de 30 dias, eu tinha a dor em 25”, conta. O sofrimento, é claro, levou Farias a consumir os remédios contra a dor quase diariamente. No começo de maio, porém, depois de ter-se consultado com pelo menos cinco profissionais de saúde – inclusive um dentista –, o aposentado chegou à clínica do médico Abouch, no Rio. Foi orientado a seguir o tratamento especial aplicado pelo médico nesses casos. A primeira providência é parar com os analgésicos. Em substituição, o paciente é medicado com corticóides por um período de quatro a seis dias. Eles inibem reações inflamatórias que possam causar a dor e os sintomas de abstinência dos analgésicos (tremores e insônia, por exemplo). Depois dessa espécie de terapia de choque, o doente passa a receber o tratamento preventivo convencional. A estratégia deu certo com Farias. Desde que começou a terapia, teve dor apenas três vezes. “Depois do tratamento especial, doei as caixas de analgésicos que guardava em casa a um centro de distribuição gratuita de remédios. Estou feliz como uma criança”, planeja.

Alerta – Farias encontrou alívio. Mas o ideal é que não se chegue a uma situação como a sua. “Quem tem dor de cabeça mais de duas ou três vezes por mês deve procurar um médico”, orienta o professor Edgard Raffaelli Jr., 70 anos, 44 deles dedicados ao estudo e tratamento das cefaléias e apontado como o profissional com maior experiência em cefaléias na América do Sul. O médico é um dos autores do livro Dor de cabeça, o que se diz… o que se sabe… (Ed. Lemos). O problema é que nem sempre o paciente bate na porta de um profissional capacitado. “A maioria dos médicos ainda não sabe tratar a dor de cabeça”, critica Abouch. Mas já há um movimento para mudar essa situação. A Sociedade Brasileira de Cefaléia (SBC) acaba de publicar o I Consenso sobre o Tratamento da Crise Migranosa, que está sendo distribuído para médicos. É uma iniciativa para definir protocolos mais precisos de diagnóstico e, assim, ajudar os profissionais a identificarem melhor o que está acontecendo com o doente. Em outra frente, está sendo criada a associação de pacientes vítimas de cefaléia, com apoio da SBC. O objetivo é facilitar o entendimento do problema e procurar ajuda adequada, quando necessário, em vez de sofrer calado ou recorrer inadvertidamente a comprimidos ou simples chazinhos receitados por parentes e vizinhos. Por enquanto, os interessados em participar da associação devem esclarecer dúvidas por meio do correio eletrônico (brheadache@netsite.com.br). Os sofredores também podem recorrer à SBC neste endereço eletrônico ou ao site www.dordecabeca.com.br, por exemplo. Não chega a ser um sistema de consulta em tempo real, mas é o primeiro passo para aqueles que nunca deram tanta atenção assim para aquela sensação de peso na cabeça. Ou de morsa comprimindo as têmporas. Ou de golpes de faca num dos lados da face. Ou, como se imaginava antigamente, de pequenos demônios habitando a caixa craniana.