Geralmente é muito difícil para o artista manter um estilo e ao mesmo tempo desvencilhar-se das marcas do sucesso de determinadas canções. Muitas vezes o público não aceita, ou melhor, as rádios recusam-se a tocar, as gravadoras querem interferir e o tal cantor, cantora ou grupo tende a xerocar as próprias fórmulas. Como não pretende cair na armadilha fatal, a fluminense Zélia Duncan vem se desdobrando para manter a coerência de, a cada trabalho, lançar novidades e, assim, solidificar uma carreira iniciada com o nome de Zélia Cristina, num longínquo maio brasiliense de 1981. Primeiro veio o disco de estréia Zélia Duncan, de 1994, no qual mostrou seu tino para o sucesso com a versão Catedral. Em 1996 perpetrou o álbum Intimidade e mais um sucesso, Enquanto durmo. Com Acesso, de 1998, fechou um ciclo de três ótimos CDs, que, num processo cada vez maior de lapidação, ampliaram seu espectro musical, consolidaram novas parcerias e a levaram a novos compositores. Agora, com Sortimento, Zélia dá continuidade ao seu casamento profissional vitorioso com o multiinstrumentista, compositor e produtor Christiaan Oyens, mas renova os ares com o produtor Beto Villares, que já colocou suas intenções modernas numa faixa do terceiro álbum solo de Herbert Vianna, O som do sim.

Mesmo sem se conhecerem anteriormente, a sintonia entre os dois se mostrou profícua. Audivelmente cheio de idéias, Villares – assim como Oyens – soube muito bem sugar os conceitos e generosidades da técnica digital, sem jogar as músicas na frieza. Em Chicken de frango, por exemplo, o som eletrônico faz a base, mas a cor vem de instrumentos compadres, como a sanfona, a zabumba e até a rabeca, espécie de violino com sonoridade fanhosa, discretamente ouvido ao fundo. Tanto a canção quanto o título divertido nasceram durante uma excursão da cantora e compositora pelo Nordeste. Ela estava num restaurante de comida a quilo e viu escrito “Chicken de frango”, que não quer dizer nada, pois acaba misturando a palavra galinha em inglês com frango em português. A letra da música, em parceria com Rodrigo Maranhão, brinca justamente com este tipo de artimanha entre os idiomas. Sob os toques e timbres de Oyens, ela também gravou Alma, de Pepeu Gomes e Arnaldo Antunes. É um pop-reggae no balanço do baixo e da percussão eletrônica, que se casou à perfeição com a voz grave-aveludada de Zélia Duncan.

Sortimento não é um disco de identificação imediata. Merece audições repetidas, que rendem prazerosas descobertas de sutis brincadeiras sonoras. São belas melodias misturadas a sons digitalizados, como os de Beleza fácil, a cargo do DJ Marco, que inventou ruído semelhante a um grilo, um submarino eletrônico, sabe-se lá. A intervenção surge como uma calda de sabor suave sobre a canção. O disco também tem guitarras roqueiras (Todos os dias) e belíssimas cordas pop, com passeios por Lulu Santos e Beatles (Me revelar). E, claro, todo o molejo brasileiríssimo que Zélia Duncan consegue internacionalizar. 


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