O corpo do ex-presidente russo Boris Yeltsin mal havia sido acomodado no caixão num subúrbio de Moscou, e os palpiteiros de plantão no Ocidente já o velavam como  “O Homem que Derrubou o Comunismo”. O título, claro, é uma cretinice quando escrita em português, mas grafado em inglês, com cacoetes americanos, assume condição de insanidade. “Como é possível que em um país que estudou com afinco a história soviética e da Federação Russa alguém possa proferir tamanha asneira?”, perguntou James Baker III, o ex-secretário de Estado do governo George Walker Bush. “Quem acabou com o comunismo foram os comunistas. Setenta anos de um modelo político-econômico incompetente”, disse o ex-secretário. O Yeltsin que morreu de insuficiência cardíaca, na segunda-feira 23, entrou na história do fim dos soviets como Pilatos no Credo. A diferença, porém, é que não se tem notícias de que Pôncio Pilatos fosse um fanfarrão.

A morte costuma apagar defeitos daqueles a quem carrega. Talvez a imagem de Yeltsin que ficará marcada para a posteridade seja aquela do líder falando às massas em 1991, por um megafone, encarapitado num tanque T-72 B. O que poucos, fora da Rússia, sabem é que o discurso já estava combinado com o chefe da operação de cerco ao Parlamento de Moscou. E o “revolucionário” liderando a contra-ofensiva a uma tentativa canhestra de golpe de Estado garantira sua segurança antecipadamente. Tanto que o coronel Illya Nikolaiev, comandante daquela divisão de blindados, dois anos depois virou alto executivo de uma das empresas de Boris Berezovsky. Este, por sua vez, é aquele que comandava o sindicato de ladrões organizado debaixo do nariz de Yeltsin presidente. Outra imagem que poderá se eternizar é a do líder político elogiado por ter “democratizado” e aberto a economia russa. Nesse caso, por “democracia” entenda-se: invasão e massacres na Chechênia, supressão das liberdades de imprensa conseguida à muque no fim do comunismo, e – principalmente – o bombardeio do Parlamento da Rússia. E quanto à “abertura econômica”, esta somente valeu para a instalação de um sindicato de gângsteres, com acesso privilegiado ao Kremlin. O primeiro presidente da Federação Russa, fundada oficialmente no réveillon de 1992, foi o facilitador de uma cleptocracia que dilapidou o patrimônio público, distribuiu a indústria e recursos do país numa ação entre amigos, e jogou ainda mais na miséria uma população que antes fazia fila para comprar batatas podres, e depois nem isso conseguia. “Milhares de médicas, cientistas, engenheiras espaciais, atletas, mães, filhas e irmãs foram bater calçada, buscando uns trocados na prostituição para poder alimentar famílias inteiras. A Rússia de Yeltsin foi o império do beberrão e dos bucaneiros, no reino das meretrizes”, diz com raiva Alexander Rozenko, ex-funcionário da Missão russa na ONU. A herança deixada por este “déspota embebido” foi o “déspota esclarecido” Vladimir Putin – que, apesar de autoritário e brutal, pelo menos colocou para fora do país boa parte da gangue de Yeltsin. Com isso, cumpriu o acordo que o levou ao poder: o de não processar o velho Boris e sua família, por corrupção. Não era preciso: bastou exilá-lo a uma dacha bem provida de vodca. A “agüinha” deu cabo do “exterminador do comunismo”.