No meio da papelada, há histórias do arco-da-velha. “Bello e aprazivel”, o hoje poluidíssimo rio Tietê, em São Paulo, já agregou valor a terrenos “na collina, iguaes aos da avenida Paulista”, sugeridos para a construção de palacetes. Um folheto com essa propaganda integra processo de janeiro de 1918, no qual o Banco Evolucionista reclama a posse de 50 mil hectares às margens do Tietê e acusa a Companhia Paulistana de Terrenos de inaugurar a prática de loteamento clandestino na cidade. Um processo anterior, de maio de 1900, revela que a guerra de patentes no Brasil também vem de longa data. Nele, o Convento da Grande Chartreuse, da França, pede reparação de perdas e danos à empresa paulista Christoffel-Stupakoff, fabricante do Licor de Ouro, uma falsificação de bebida produzida pelos religiosos franceses.

Junto com processos sobre falsificação de moedas e cédulas do começo do século XIX, os casos do loteamento clandestino e da briga de patente se encontram entre 400 mil processos recém-cadastrados por arquivistas convocados pelo Centro de Memória da Justiça Federal em São Paulo. “A ação mais antiga que encontramos, de março de 1821, mostra o quanto o Brasil demorou a se livrar da carga escravocrata”, diz o juiz Wilson Zauhy Filho, responsável pelo Centro. Ele se refere a processo no qual o sargento Inácio de Araújo Ferraz tem penhorado seu único bem: três escravos.

No momento em que um projeto de lei prevendo a incineração dos arquivos judiciais tramita no Congresso, a iniciativa do juiz Zauhy Filho demonstra a necessidade de preservar a documentação. “Sou contra a incineração, mesmo a seletiva, pois existem recursos tecnológicos para garantir a memória nacional”, defende. Entre as prioridades do Centro de Memória está a busca de convênios com universidades, para que especialistas possam avaliar o valor histórico da documentação e prepará-la para a consulta pública. Por enquanto, uma pequena amostra dos documentos começou a ser exposta em São Paulo na semana passada. No depósito da instituição, porém, existem 14 mil caixas a serem abertas, onde devem estar outros 600 mil processos.