A jovem Severine circula em um mundo de tons pastel, no qual senhoritas recatadas usam saias rodadas de cintura alta e se equilibram delicadamente sobre sapatilhas de ponta. Fecham-se as cortinas. Ao reabrirem, uma nova Severine se revela. Agora, ela dança sob luzes de boate e música eletrônica, veste um provocante corpete negro, calça botas de vinil de canos longos e exibe uma cinta-liga. Uma dominatrix – ou dominadora, como são chamadas as mulheres que comandam relacionamentos sadomasoquistas. Estes choques de realidade e conflito, razão e impulso formam a tônica central do novo espetáculo de Deborah Colker, “Belle”, inspirado no livro “Belle du Jour” (“A Bela da Tarde”), escrito pelo francês Joseph Kessel em 1928 e eternizado por Catherine Deneuve em 1967, em filme homônimo dirigido por Luis Buñuel. O balé está em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e segue, em setembro, para o Teatro Alfa, em São Paulo.

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Imagens das diferentes aparições de Severine (fotos a seguir).
Mudança da iluminação, da música e dos figurinos marca a transformação
de personalidade da dona de casa que se prostitui em busca de satisfação sexual

“A sensualidade é uma busca minha. Quando se trata do desejo, entra-se no mundo do erotismo. Falamos sobre a alma e o instinto, questionamos nossa condição humana”, explica a coreógrafa. Na história, Severine se vê em um conflito pessoal: apesar de amar seu marido, não consegue se satisfazer com a relação e passa a nutrir um desejo incontrolável de experimentar a vida em um prostíbulo. Durante as tardes, enquanto o cônjuge trabalha, ela vive sob o pseudônimo de Belle, uma prostituta de luxo que trabalha sob o comando de Madame Anais. Deborah classifica o espetáculo como uma inspiração aberta, sem amarras ao roteiro original. Ela optou por cortar todos os demais personagens e focar apenas nos conflitos internos da protagonista, interpretada por duas bailarinas, em uma estratégia para explicitar a mudança de personalidade. “A história de Kessel é de uma mulher que parece outra. Ela troca de nome, muda a si mesma. Por isso, é representada por duas bailarinas, duas movimentações totalmente distintas, uma oposta à outra. A primeira é pequenininha e magrinha, a segunda é enorme exatamente para mostrar essa mudança psicológica”, explica a autora.

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O maior desafio, segundo Deborah, foi manter o equilíbrio entre sexualidade e classe. “Tomei uma surra!”, diz a coreógrafa, para exprimir a exaustão. Mas afirma estar feliz com o resultado final – o que, admite, não é uma sensação comum em todos os seus trabalhos. Exigente, diz que levou anos pensando em cada detalhe para fazer esse balé ser sexy sem resvalar em alguma vulgaridade. “O meu bordel é chique, de gente sofisticada, ninguém ali compra roupa no camelô, não”, brinca. O figurino, assinado por Samuel Cirnansck, é inspirado na alta-costura, com pedras, transparências e bordados.

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A trilha sonora, criada por Berna Ceppas, tem canções de Miles Davis, da banda americana de rock Velvet Underground e batidas eletrônicas. O trompetista foi um pedido pessoal da coreógrafa: “Fecho os olhos e o vejo tocando dentro de um bordel imaginário. É uma música tão cerebral, tão erótica, tão secreta…” Apesar das altas doses de sensualidade, Deborah garante que o sadomasoquismo da versão cinematográfica de Buñuel, que chocou a sociedade à época, não estará nos palcos. Sua fonte foi especificamente o romance original, e não a composição de Catherine Deneuve. “A fonte é o romance, um clássico que se mantém atual. E o livro não é sadomasô. A questão principal é que ela gosta de outro mundo, não do mundo dela. E este é socialmente e economicamente inferior. Existe uma ausência que nada de sua realidade consegue preencher.”

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A duplicidade da personagem e as diferenças sexuais entre suas personalidades podem inspirar lembranças de Nina, a doce bailarina de “Cisne Negro”, interpretada por Natalie Portman, mas a coreógrafa esclarece a singularidade de sua Severine. “No “Cisne”, é o destino, uma constatação da vida de que existem esses dois lados em todos nós. Mas a mulher que eu criei, a Belle, não é santa, é perturbada. Não é algo que acontece a ela, é uma coisa que ela mesma procura, e é isso que amo tanto nessa personagem. Nem todo mundo consegue ir atrás do que quer como ela.”

Fotos: Divulgação