Parado numa fila de cinema, Lou Reed viu um mendigo esbravejando com uma mulher. Assim que chegou mais perto – contou ele em recente entrevista a um jornal paulista –, notou que o sem-teto não estava propriamente aborrecendo a senhora, e sim recitando aos brados O corvo, de Edgar Allan Poe. Quem está familiarizado com o engajamento de Lou Reed nas descrições veementes do comportamento humano adivinhará que ele transformará em letra de música a situação curiosa. E o fará em breve. A historinha serve para ilustrar a sensibilidade clínica do roqueiro de 58 anos, que acaba de lançar Ecstasy, seu 22º álbum solo, desde que saiu da lendária banda Velvet Underground. Trata-se de mais uma prova de que Lou Reed, com certeza, é o melhor cronista que o rock já promoveu. Sua verve está afiadíssima. Sexo extremado, drogas e amores amargos integram o panorama musical de Ecstasy, um disco que deve ser apreciado – como o próprio autor já aconselhou em vezes anteriores – com fone de ouvido para ser mais bem entendido em sua plenitude, tanto em relação às letras contundentes quanto às melodias e harmonias de peso.

Um fã reconhecerá em Ecstasy todas as marcas impressas por esse gênio do ritmo. Lá está a guitarra ora musculosa, ora melodiosa, que em ambas as situações ajudam a esfregar na cara das pessoas tanto a realidade desagradável quanto seu lado afetivo, mas complexo quando refletido na relação a dois. As faixas Tatters e Turning time around são assim. Muitos podem pensar que nas letras das canções, Reed escancarou musicalmente para o mundo seu casamento duradouro com a performer Laurie Anderson. O roqueiro nega. São apenas fruto de sua observação. Outra característica interessante – especialmente para os países de língua portuguesa, já que damos nomes às notas musicais e em quase todo o mundo elas são denominadas por letras – é encontrada em Paranoia key of e (paranóia em acorde mi), na qual Reed designa as doenças da mente em acordes. Assim, matricídio está em ré, anorexia em sol bemol, vertigem em lá. E alguns ainda afirmam que rock é um gênero fútil…


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias