Maio é o mês que a escritora cearense Rachel de Queiroz escolheu para ir à sua fazenda Não me Deixes. Rachel se diz feliz naquela fatia do município de Quixadá, interior do Ceará, onde mergulha no açude, recebe os amigos, cozinha para eles e preenche o silêncio da noite com a prosa dos caboclos. Até agosto do ano passado, costumava se alternar entre o Rio de Janeiro e a fazenda, mas sua rotina foi radicalmente alterada por um acidente vascular cerebral. Ficou 12 dias hospitalizada e, daquele período, guarda poucas lembranças. “Sinto como se tivesse sido espoliada de um pedaço de minha vida.” Uma fisioterapia diária lhe recuperou os movimentos perdidos nos membros direitos, mas Rachel ainda se locomove com dificuldade, apoiada numa bengala. Sua letra são garranchos e a voz é baixa, melancólica. O ruído dos ônibus que passam perto do prédio onde mora, no Leblon, zona sul carioca, a incomoda bastante. Mas uma força vital impulsiona a autora de O quinze e Memorial de Maria Moura. Aos 89 anos, ela prepara-se para lançar novo livro pela editora Siciliano, Receitas do Não me Deixes, previsto para julho, no qual falará de seu assunto predileto. “É um livro de culinária entremeado de comentários e lembranças da infância”, explica.

Receitas – A idéia foi montar uma espécie de mostruário da mesa nordestina, em que até hoje, segundo Rachel, “comem-se com fidelidade as receitas das senhoras donas, nossas avós”. Um dos melhores pratos da obra foi herança de sua babá Antônia e tem o bizarro nome de “Carne Sepultada”. Pega-se uma carne nobre muito bem temperada, envolvida em folha de bananeira. Cava-se um buraco no chão de terra, revestido de pedra. Deixa-se a carne lá dentro e, depois de coberta, se acende uma fogueira por cima. O prato só fica pronto quando acaba o fogo. “Como a folha de bananeira é totalmente impermeável, o sabor da carne é mantido na íntegra”, ensina a mestre-cuca cujos brios nordestinos aturam críticas ao seu texto, nunca a sua culinária. “Defendo meus foros de cozinheira com unhas e dentes”, avisa.

O livro foi ditado à enfermeira, que o passou para o computador. Mesmo no auge da doença, Rachel nunca perdeu a lucidez, apesar das lacunas na memória, nem deixou de escrever seus artigos semanais para O Estado de S.Paulo. Desde os 16 anos ela imprime sua assinatura em jornais. Quem testemunha é sua irmã caçula, Maria Luiza, 73 anos, que Rachel criou como filha e com quem compartilhou a biografia Tantos anos (1998). “No hospital, presenciei suas conversas telefônicas sobre política com Ciro Gomes e José Sarney”, conta ela. Nos últimos tempos, a situação familiar se inverteu. É Maria Luiza quem está tomando as rédeas das comemorações de 17 de novembro, quando Rachel de Queiroz completa 90 anos. Fiel aos desejos da irmã, ela pretende reunir os amigos e parentes em seu apartamento, na Barra da Tijuca. Mas quem parece não dar a mínima é a própria aniversariante. “Sou desligada das glórias e do pó dourado que cerca as reputações literárias. Importante é escrever, o resto são adjacências”, comenta, como se perpetrasse mais uma página de sua obra.

Escritora bissexta – Escrever, no entanto, curiosamente nunca foi um prazer para quem legou livros antológicos como Dôra Doralina (1975). “Para mim é sempre penoso, cansa as mãos”, segreda. A secura de O quinze (1930), seu trabalho de estréia na literatura, e a intensidade de Memorial de Maria Moura foram confeccionados sob o mais cortante sangue-frio. “Se me apaixonar pelo que escrevo, prejudico o resultado final. Tenho de ser inimiga de meu texto”, diagnostica. A constatação talvez tenha ajudado a fazer de Rachel de Queiroz uma escritora quase bissexta, com longos intervalos entre cada lançamento. O crítico Wilson Martins, que considera Dôra Doralina o maior romance da autora, pondera que a melhor maneira de conhecer a obra de Rachel é dividi-la em etapas. “Como um gráfico de altos e baixos”, observa. Já o escritor Lêdo Ivo, que com ela compartilhou sua triunfante entrada de primeira mulher na Academia Brasileira de Letras, em 1977, não mede adjetivos para defini-la. “É a primeira-dama da literatura brasileira no século XX.”

Trotskismo – Em todos estes anos de convívio, uma das histórias mais divertidas que Ivo ouviu da escritora foi sobre um encontro casual que ela teve com Jorge Amado, em 1945, quando o escritor baiano nem sequer a cumprimentou. Rachel não entendeu nada. À noite, recebeu um telefonema de Amado, que esclareceu o mistério: “Rachelzinha, me perdoe, mas estou sendo espionado pelo PC.” O Partido Comunista, que recém-entrara para a legalidade, proibia que seus membros cumprimentassem anticomunistas. Rachel havia se desligado do partido em 1932, decepcionada com a “mesquinharia” dos militantes. Seus ideais de justa distribuição de renda, contudo, continuam intactos. O coração esquerdista de primeira hora, que evoluiu para o trotskismo nos tempos de Getúlio Vargas, lhe rendeu um mês de prisão incomunicável, em 1937. “Foi muito bom, porque fiquei em um quartel de bombeiros. Eles faziam serenata para mim toda noite”, lembra, divertindo-se. Depois, houve quem a acusasse de direitista, pelo fato de ser amiga de Castello Branco. “Nunca conspirei”, garante. De qualquer forma, o passado político não a mobiliza mais. O que importa mesmo neste momento é voltar à fazenda e literariamente colocar as panelas para trabalhar.