Até o dia 27 de abril, o prefeito Rudy Giuliani, de Nova York, vinha enfrentando um seriíssimo problema de imagem. Ele, que já fora chamado de Batman em decorrência de sua bem-sucedida luta para diminuir as estatísticas de criminalidade na cidade, transformara-se aos olhos da multidão numa outra espécie de homem-morcego, algo como o vampiro Nosferatu. Sua imagem se deteriorara a níveis espantosos principalmente devido à constante e intransigente defesa dos métodos truculentos do Departamento de Polícia de Nova York, inclusive com o clamoroso caso de John Diamond, um negro abatido por policiais em março, embora estivesse desarmado. Mas, na última terça-feira de abril, os nova-iorquinos descobriram que seu prefeito, apesar das impressões ao contrário, é humano, afinal. Depois de seis anos e meio de mão-de-ferro, rabugices e discurso vitupérico, Giuliani mostrou seu lado sensível.

Numa de suas corriqueiras entrevistas coletivas, o prefeito revelou que estava com câncer na próstata. A doença ainda está em estágio inicial e os prognósticos para o tratamento são bastante animadores, mas a gravidade do problema não pode ser menosprezada. Tanto que o próprio paciente, traindo sua vocação guerreira, chegou a ponto de colocar dúvidas até sobre sua permanência na atual corrida eleitoral ao Senado. O impacto foi semelhante ao de ver Godzilla verter uma lágrima.

Marketing político – Naquela noite, Hillary Clinton, a rival de Giuliani na disputa pelo cargo de senador, tinha agendado um badalado comício-debate com um grande grupo de eleitores de todo Estado, moderado e transmitido pela rede de tevê CNN. Seria um dos pontos altos de sua campanha, que virara a mesa das pesquisas e já estava entre 8 e 10 pontos porcentuais acima nas preferências de votos. O evento, claro, ficou num segundo plano depois da revelação do prefeito, e o debate perdeu todo o impacto. Ninguém falava em outro assunto que não fosse a próstata do prefeito. Embora se saiba que suas chances de bater a doença estejam na casa dos 90% a 99%, ninguém esquece de que o mesmo tipo de câncer matou o pai de Rudy, duas décadas atrás. Imediatamente começaram as especulações sobre o futuro da candidatura republicana em novembro próximo. “Não acho que seja justo responder questões sobre a corrida ao Senado agora”, disse Giuliani. “Creio que meu foco deve se concentrar agora em qual é o melhor tratamento para a doença. Acho que tenho de dar um tempinho antes de voltar a considerar minha candidatura.” Foi o bastante para transformar um lamentável caso médico numa genial jogada de marketing político.
Ninguém acusa o prefeito de ter manipulado sua doença tão cinicamente. Ele nem precisava forçar a barra, como, aliás, costuma ser seu modus operandi. O sentimento de solidariedade diante do câncer costuma ser metastático. Mas o episódio mostra também que Giuliani é um animal político de sangue azul e sabe transformar adversidades em vantagens.

Rudy estava mergulhado num inferno astral que balançava suas chances de fazer frente a uma Hillary revigorada. Primeiro o prefeito correu aos microfones para jogar lama na reputação de um defunto, John Diamond. Ele havia recusado as ofertas de um policial disfarçado numa transação de drogas. Houve bate-boca, troca de tapas e tiros, que fizeram de Diamond mais uma das vítimas fatais da brutalidade policial. A população ficou revoltada com a impiedade do prefeito em defesa dos métodos de sua polícia. Enquanto isso, Hillary percorria 58 das 62 regiões eleitorais do Estado, num périplo que nenhum candidato – muito menos o prefeito de Nova York – teve fôlego para aguentar. O resultado dessa performance seria mostrado nas pesquisas de opinião que davam, pela primeira vez em muitos meses, a vantagem de dez pontos porcentuais para a primeira-dama. E, para unir insulto ao ferimento, a esposa de Giuliani – que há meses retirou sua aliança de casada do dedo, não usa o sobrenome e não é vista junto do marido em nenhuma ocasião – resolveu estrelar a peça Diálogo da vagina. Não só a peça foi escrita por uma partidária de Hillary e crítica do prefeito como trata de assuntos sexuais que são extremamente malvistos pela administração conservadora da cidade.

A fragilidade demonstrada com o anúncio do câncer do prefeito, porém, reverteu esse quadro moribundo do candidato Giuliani. Seus números nas pesquisas começaram a subir um pouco. Até mesmo os inimigos telefonaram para prestar solidariedade (Hillary entre eles). A esposa (conhecida apenas como Donna Hanover) cancelou a estréia no palco. E o Partido Republicano – que tem várias alas contrárias a Rudy – finalmente teve de reconhecer que o prefeito representa a única chance de o partido agarrar a vaga no Senado. O experiente velejador Giuliani sabe postar suas velas para tirar o melhor proveito dos ventos que mudam. Numa série de aparições, o candidato doente deu várias demonstrações de sua nova alma adquirida. Insistiu também no suspense sobre sua disposição para a corrida atrás dos votos. Não que exista muita gente acreditando numa desistência. “Aposto qualquer dinheiro como Giuliani vai seguir a todo vapor até a votação em novembro”, disse o senador por Nova York Charles Schumer. “O câncer de Giuliani é absolutamente curável.

Acho que nem morto ele desistiria da candidatura”, declarou a ISTOÉ o reverendo Al Sharpton, arqui-rival do prefeito. E o partidário Guy Molinari, republicano que domina o gordo distrito eleitoral de Staten Island, concorda: “Rudy não é homem de desistir. Ele já tomou consciência de que, com cuidado, tratando a doença cedo, ele tem condições de bater dois males: o câncer e Hillary Clinton”, diz. Parafraseando a escritora Susan Sontag, seria o caso da doença como metáfora. Política, no caso.