"Na minha lápide quero que escrevam: ‘Não chorem, porque aqui jaz uma mulher real, bem vivida e feliz.’” A frase, dita por Sandra Bréa numa entrevista há dez anos, ajuda a entender um pouco da personalidade da atriz que, de símbolo sexual na década de 70, chegou ao fim da vida lutando contra o vírus da Aids. Sandra chocou o País em agosto de 1993 ao revelar, com seu cativante sorriso, que contraíra o HIV e que dedicaria o que lhe restasse de vida à luta contra o preconceito. A atriz morreu às 10h30 da quinta-feira 4 em sua casa, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
A Aids, que tirou La Bréa da cena nacional e a afastou dos amigos, não foi a causa de sua morte. A atriz, que faria 48 anos na próxima quinta-feira, 11 de maio, foi abatida por um câncer de pulmão, provocado, segundo a médica Margareth Dalcomo, pelo fumo que a própria Sandra classificava como vício maldito. A médica diagnosticou a doença em dezembro passado. “A Aids vinha sendo controlada. Quando descobrimos o câncer, não dava mais para operar. Foi indicado rádio ou quimioterapia, mas Sandra não quis fazer. Ela tinha também um enfisema (distúrbio caracterizado por aumento de ar nos alvéolos) bastante avançado para a idade, o que acelerou a evolução do tumor”, disse a médica. A ocorrência do câncer não está relacionada à Aids. Mas a infecção pelo HIV pode deixar o organismo mais desprotegido. “O vírus fragiliza o sistema de defesa do corpo e prejudica sua capacidade de identificar as células que se proliferam descontroladamente”, explica o hematologista Celso Massumoto, de São Paulo.

Não querer lutar contra o câncer foi mais uma demonstração do temperamento da atriz. Sandra Bréa não era uma mulher comum. Começou sua carreira aos 13 anos, como manequim, afirmando que seria uma estrela de Hollywood. Aos 20 anos, Daniel Filho a convidou para interpretar Telma, a primeira figura feminina da novela O bem amado, da Globo. Era o ano de 1973. A glória veio com Sandra e Miéle, um dos programas de maior sucesso no final dos anos 70.

Autopromoção – Em agosto de 1993, Sandra Bréa surpreendeu os fãs ao convocar uma entrevista coletiva para anunciar que tinha contraído o vírus da Aids. Não tardou para as más-línguas espalharem a versão de que era uma tentativa de autopromoção. Na época, Sandra não atraía os holofotes como antes. Seu último trabalho na tevê tinha sido um pequeno papel na novela Felicidade, de 1991. Os boatos, infelizmente, eram falsos. A primeira versão dada pela atriz era de que o vírus havia sido contraído numa transfusão de sangue recebida numa rua do Rio. Depois de um acidente, ela ficou horas presa nas ferragens de um carro e teria recebido o sangue contaminado. A versão definitiva, como admitiu a atriz, ela só revelou três anos depois. Foi contaminada numa relação sexual com um fotógrafo chamado Christian, que já havia morrido.


A imagem de otimista compulsiva acompanharia Sandra Bréa mesmo após o anúncio de sua doença. Nas campanhas e entrevistas contra o preconceito, ela se esforçou para manter o sorriso com o qual conquistara o Brasil. No íntimo, seu sofrimento maior era o abandono por parte dos amigos. “No começo, ela ainda chamava as pessoas aqui. Depois, desistiu”, afirma o caseiro José Carlos Costa Santana, 28 anos.

Nos últimos anos, Sandra vivia apenas com os empregados: um caseiro, um motorista, uma secretária e uma enfermeira. Um dos poucos parentes vivos era o pai, Joseph Brito, aviador aposentado da Força Aérea Americana. Ele está doente e não pôde ir ao enterro. Sandra deixou um filho, Alexandre Bréa Brito, 21 anos, que ela adotou com poucos dias de vida. Segundo amigos, Alexandre também não esteve muito presente nos últimos tempos. Ele deixou de morar com Sandra há três anos, quando se casou. O jovem nega ter abandonado a mãe. “Sempre estive ao lado dela. Ligava sempre para saber se estava bem. Ela foi a pessoa que mais cuidou de mim”, disse Alexandre no velório.

Visitas frequentes, Sandra só costumava receber do amigo Ney Latorraca, que aparecia religiosamente aos sábados. “As visitas deixavam a dona Sandra muito feliz. O Ney foi o único amigo que nunca a esqueceu”, afirma o caseiro José Carlos. Emocionado com a morte de Sandra, o ator disse que nunca a visitou por caridade ou obrigação. “Éramos amigos, gostava dela mesmo. Era uma pessoa deslumbrante, grande atriz. Estive lá pela última vez em 9 de abril. Rimos muito.”

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Estigma – A atriz viveu seus últimos dias lamentando que, por causa da Aids, não podia mais andar pelas ruas e raras vezes saía para passear. “Há uns dois meses, foi a um restaurante. Chegando lá, passou mal. Os outros fregueses olharam com cara feia e ela ficou muito chateada. Não quis mais sair”, conta José Carlos. Para os empregados, Sandra não se cansava de contar histórias dos tempos dourados. “Ela começava a falar e, aos poucos, ficava com os olhos cheios de água. No auge da fama, era cortejada. Com a Aids, ficou sozinha. É muito triste acabar assim”, afirma o caseiro.

Pouca prevenção
Dados do Ministério da Saúde mostram que apenas 69% da população brasileira sabe que a camisinha protege contra a Aids. O restante não tem idéia de como se proteger durante o ato sexual, da mesma maneira que 40% dos brasileiros desconhecem o perigo do uso compartilhado de seringas e 28% temem dividir um prato de comida com um portador do HIV. Com 536 mil soropositivos, o País disputa com a França o segundo lugar no ranking mundial da Aids em número de infectados, atrás somente dos Estados Unidos.

O coordenador do Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids do Ministério da Saúde, Paulo Teixeira, acredita que os jovens se acostumam com maior facilidade à camisinha. “Os mais velhos têm de incorporar um comportamento, enquanto a geração atual já nasceu no contexto da doença”, diz. Apesar disso, apenas 44% dos jovens sexualmente ativos entre 16 e 25 anos usam o preservativo. O universitário F.V.C., 21 anos, integra a massa dos que dispensam maiores cuidados na hora de transar. “Fico tão grilado com a hipótese de não sentir prazer que, sempre que coloco a camisinha, brocho.” Mas nenhuma garota se recusou a transar com ele por causa disso.

A doutora em Psicologia Sexual Vera Paiva acaba de lançar o livro Fazendo arte com a camisinha, fruto de quase dez anos de pesquisa. Vera acredita que o receio de exigir o uso do preservativo pelo parceiro é um dos maiores problemas no controle da epidemia, principalmente entre as meninas. Além disso, ela afirma existir um terrível culto à monogamia, como se ter parceiro fixo fosse garantia de saúde. “Com seis meses de namoro, o casal abandona a camisinha, pois um acredita no outro e acha que isso basta para a prevenção”, explica.

 

O cineasta Miguel Farias, que dirigiu Sandra no filme República dos assassinos, conta que tentou contatar a atriz algumas vezes nos últimos anos. “Ela dizia que, para me encontrar, queria estar melhor.” O cineasta Farias acredita que a coragem de anunciar que estava com Aids pode ter acarretado dissabores para Sandra. “Ao assumir a doença, ela ajudou muitas pessoas. Mas isso fez com que ela ficasse estigmatizada. Acabou afastada dos amigos e do trabalho.”

Depois de anunciar sua doença, Sandra Bréa só voltou à tevê no último capítulo da novela Zazá, em 1997. Ela teve uma pequena participação para falar de sua luta contra o preconceito. Estava inchada, provavelmente devido ao coquetel de remédios contra a Aids. Todo o tratamento feito por Sandra foi pago pela Globo, que sempre a manteve no quadro de funcionários.

Isolamento – A dor solitária de Sandra Bréa ilustra uma das faces mais perversas da epidemia de Aids. O combate à doença avança nos laboratórios, mas o preconceito resiste. Como Sandra, milhares de brasileiros também amargam o isolamento e o medo da discriminação. O infectologista Artur Timerman afirma que os pacientes, ao receberem o diagnóstico, ficam mais angustiados com a reação das pessoas do que com o tratamento. “Em vez de me perguntarem sobre a chance de sobrevida, eles se preocupam em encontrar a melhor forma de não deixar transparecer a doença aos outros.” No fundo, esses pacientes sabem que só têm duas opções: tornar pública sua condição, com risco de serem discriminados, ou se calar e passar a viver com medo de serem descobertos.

Em geral, é nos locais de trabalho que o preconceito se traduz em ações. Foi como cobrador numa empresa paulista que L.S., 20 anos, sentiu o drama que é reconhecer publicamente a sua condição de portador do HIV. Depois de faltar alguns dias ao trabalho, o rapaz foi pressionado a falar qual era seu problema de saúde. “Perdi o controle e contei. Em seguida, fui demitido sob alegação de cortes na empresa”, conta. “Ameacei entrar com uma ação e o gerente, que era meu colega na faculdade de Direito, disse que se eu fizesse isso ele iria espalhar minha condição.” L.S. não se intimidou. Processou a empresa e ganhou. O gerente cumpriu a promessa. Disse em alto e bom som para os colegas que L.S. estava magro porque tinha Aids. Depois daquele dia, os amigos passaram a evitá-lo.

Por causa de histórias como essa, expor sua condição no trabalho virou um dilema para os soropositivos. A advogada Aurea Abbade, do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids (Gapa), explica que o HIV positivo não precisa contar. Mas, se é demitido, a empresa não pode ser acusada de discriminação. Um caminho é contar ao médico ou à assistente social e pedir sigilo. Isso ajudaria em casos de necessidade de faltar ao trabalho. Por outro lado, quem começa a desenvolver os sintomas da Aids precisa contar. Por lei, o doente não pode ser demitido. Se, no entanto, o soropositivo resolve revelar e logo depois é dispensado, poderá entrar com uma ação na Justiça. “Em geral, a discriminação aparece e muitas vezes ganhamos as causas”, afirma Aurea.

Não foi o que aconteceu com Waldemar Alves, 31 anos. Em 1990 trabalhava no supermercado Eldorado, em São Paulo. Tinha sido promovido e soube que estava com o vírus. O diagnóstico foi feito pelo serviço de seguro médico da empresa. “Três meses depois fui demitido sob alegação de que o supermercado seria vendido”, conta Alves. “Entrei com uma ação e ganhei na primeira instância. A empresa recorreu e perdi”, lamenta. Alves nunca mais conseguiu emprego.

Mesmo assim, juntou forças para lutar contra o preconceito. Passou a militar no Gapa e hoje é vice-presidente da entidade. “A discriminação é também afetiva. Sou homossexual e recentemente meu companheiro terminou o relacionamento ao saber da minha condição”, conta.


Pior é quando o vírus do preconceito atinge crianças. Responsável pela Casa Vida, entidade que abriga menores portadores de HIV, o padre Júlio Lancelotti dá apoio a meninos e meninas que sentem na escola o drama da discriminação. “Eles não revelam sua condição. Temem perder os amigos. E quando outras crianças ficam sabendo se afastam”, conta o padre. “Isso acontece por influência da hipocrisia dos adultos. Outro dia, uma menina da Casa Vida estava chorando. Perguntei o motivo e ela contou que uma amiga não queria mais se relacionar com ela por ser aidética”, lembra. O padre explicou que essa palavra não existe e que, se ela pensava assim, não era mesmo uma amiga.

Rejeição – Depois de 20 anos de história da doença, era de imaginar que as pessoas mais informadas fossem menos preconceituosas. No entanto, ainda hoje há quem não queira dividir o mesmo prato ou copo com um soropositivo. O infectologista paulista Caio Rosenthal inaugurou no início do ano seu novo consultório com entrada e saída independentes para que os pacientes não se encontrem. Foi um jeito de atender ao desejo dos doentes de ter mais privacidade. Tanta rejeição leva a pensar sobre os medos da sociedade. Na opinião da psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Projeto de Sexualidade da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, uma das razões seria o fato de a doença ainda estar ligada à promiscuidade. “Mas o preconceito também existe porque o soropositivo passa a ser visto como um moribundo. E ninguém gosta de conviver com moribundo. As pessoas preferem se afastar do velho, do cancerígeno, do miserável, do portador do HIV. São figuras desagradáveis, que nos lembram da existência da morte”, afirma.

Jogo da vida

Existem várias razões para o adjetivo “Magic” ter sido acrescido ao nome de Earvin Johnson. Primeiro, ele conseguiu vencer a infância pobre para se transformar numa das maiores legendas do basquete. Colecionou cinco títulos da NBA – a liga americana – e foi três vezes eleito melhor jogador do ano. Depois, em 7 de novembro de 1991, espantou o mundo ao anunciar que estava infectado com o vírus da Aids. Foi para a aposentadoria prometendo que tentaria ganhar mais aquela batalha. Até agora tem cumprido a promessa. É um quarentão de aparência ultra-saudável.

Magic Johnson não apresenta manifestações do HIV no organismo. Seu aspecto de saúde plena é mantido pelo coquetel de medicamentos. “Isso não quer dizer que o vírus não esteja com ele, em pequena quantidade e escondido em alguma parte”, diz David Ho, da equipe de médicos que supervisiona o tratamento do ex-jogador. A doença não o impede de disputar algumas partidas beneficentes. “As pessoas pensavam que eu iria embora. Mas nunca tive plano de sumir de vista”, afirmou o sempre sorridente Johnson, na semana passada, na Universidade da Califórnia. “Todos nós temos de assumir nossas responsabilidades. Eu, por exemplo, não culpo ninguém pela minha condição. Sexo sem proteção é o beijo da morte. Agora tento levar a todos a consciência desse problema”, contou. Pesquisas indicam que a história do ex-jogador ajudou a reduzir o risco de contágio entre os jovens americanos. O uso de camisinha, por exemplo, aumentou 46% desde 1991. A tragédia de Magic Johnson acabou funcionando como propaganda para o combate à Aids. Osmar Freitas Jr. – Nova York


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